Jorge Amado, Cyro de Mattos e Zélia Gatai no bar Vesúvio, em Ilhéus
O Poeta Jorge Amado
Cyro de Mattos
Jorge Amado é prosador de linguagem sensual na recriação da vida. O prosador fluente convive com o poeta, em aliança que emerge afetiva e escorre solidária na escrita lírica. Em suas visões românticas, embora use uma linguagem denotativa, no que diz respeito aos sentidos, o prosador alcança o poeta quando transmite uma poesia em nível sensitivo da fala. Recorre ao cordel, logrando extrair versos populares ditos por sua própria voz, encaixados nos falares dos seus personagens ou atribuídos aos cantadores.
A Estrada do Mar é o único livro de Jorge Amado constituído de poemas. Publicado em 1938, é uma raridade bibliográfica. Apesar de tudo, não é difícil encontrar nas histórias de Jorge Amado pequenos e medianos poemas. Da linguagem só amor, o poeta-romancista faz a palavra ressoar como música e assim o eu lírico pensa a vida pelo som, que lateja sentidos em diversas direções.
Em O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, versos de Jorge Amado dizem do mundo que só tem graça e encanto quando se vive nele fora das prisões.
O mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
Em Terras do Sem Fim, a alma romanceira de Jorge Amado adverte na epígrafe do livro que vai contar uma história de espantar.
Contada a história das lutas sangrentas pelo domínio das terras do Sequeiro Grande, o poeta interfere no romancista para relembrá-la tempos depois na voz dos ceguinhos pelas feiras.
Fazia pena, dava dó,
Tanta gente que morria.
Cabra de Horácio caía
E caía dos Badaró...
Rolavam os corpos no chão,
Dava dor no coração
Ver tanta gente morrer,
Ver tanta gente matar.
Se largou foice e machado,
Se pegou repetição...
Loja de arma enricou,
A gente toda comprou,
Se vendeu como um milhão.
Homem macho era Sinhô,
O chefe dos Badaró...
Uma vez, ele ia só,
Com cinco homens acabou.
Juca não era menos
Coragem nele sobrava,
E Juca não respeitava
Nem os grandes
Nem os pequenos.
Braz de nome Brasilino
José dos Santos se chamava,
Com ele ficava fino,
Mesmo do chão atirava,
Tanto ferido, matava.
Cantadores e violeiros comentavam nos romances cenas e episódios sobre a luta do Sequeiro Grande, ressaltando as figuras e os feitos, as inquietações também. Dessa maneira falavam das esposas:
Mulher casada não havia
Só se fosse na Bahia...
Por aqui já se dizia:
Casada era só projeto
- Mesmo as que tinham neto –
De viúva no outro dia.
Em Tenda dos Milagres, o primeiro livro em que Pedro Archanjo defende a raça negra e se opõe ao racismo proposto pelos catedráticos da Faculdade de Medicina, mereceu versos elogiosos dos repentistas e poetas populares da Bahia. O poeta Florisvaldo Mattos, vestido por Jorge Amado como repentista de fervoroso público, em festas de aniversário, batizado e casamento, glosa a pendência:
Aos leitores apresento
Um tratado de valor
Sobre a vida da Bahia
Mestre Achanjo é seu autor
Sua pena é o talento
E sua tinta a valentia.
A publicação de “Apontamentos”, outro livro do filósofo popular, malandro e boêmio, freqüentador de candomblé e ateu, Pedro Archanjo, recebe comentários positivos de Caetano Gil, para Jorge Amado um rebelde e bravo trovador:
Mestre Archanjo foi dizer
Que mulato sabe ler
Oh! que ousada opinião
Gritou logo um professor
Onde se viu negro letrado?
Onde se viu pardo doutor?
Venha ouvir seu delegado
Oh! que ousada opinião.
Depressa seu delegado
Venha ouvir o desgraçado
Oh! que ousada opinião
Gritou logo um professor
Meta o pardo na prisão
Mestre Archanjo foi dizer
Que mulato sabe ler
Oh! que ousada opinião”.
Em Mar Morto, o estilo fino e colorido de Jorge Amado é vazado numa linguagem que caracteriza bem a emoção pessoal do poeta. Seu discurso é assim revelador do modo particular de ver os seres e as pessoas no mundo, sendo, portanto,manifestação de boa poesia, simples e rica, na cadência lírica da vida.
"Lívia olha de sua janela
o mar morto sem Lua.
Aponta a Madrugada.
Os homens,
que rondavam a sua porta,
o seu corpo sem dono,
voltaram para as suas casas.
Agora tudo é mistério.
A música acabou.
Aos poucos as coisas se animam,
os cenários se movem,
os homens se alegram.
A madrugada rompe
sobre o mar morto”.
Existe aqui uma apurada musicalidade de versos na frase, numa demonstração sem esforço do poeta que sabe visualizar o espírito do mundo em suas manifestações líricas, ritmadas pelo mistério e beleza da vida. Não é por acaso que esse romance é terminado com uma alegoria poética. Sua musicalidade sustenta e repercute numa atmosfera que é recebida mais pelos ouvidos que pelos olhos. O espírito do mundo manifesta-se através de um ritmo que sustenta com suficiência idéias e sentimentos do poeta diante das pessoas e coisas. A dinâmica desse romance está saturada de poesia ligada estreitamente à gente do cais da Bahia.
Em Gabriela, Cravo e Canela, romance divisor de água na obra amadiana, como querem os críticos, há poemas escritos por Jorge Amado em forma de balada e canção, abrindo vários capítulos. Lá estão pulsando puro lirismo “Lamento de Glória”, “Cantar de Amigo de Gabriela” e . “Cantiga de Ninar Malvina”, entre outros. Escutem “Cantiga de Ninar Malvina”, que abre o terceiro capítulo.
Dorme, menina dormida
Teu lindo sonho a sonhar.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar.
Estou presa em meu jardim
Com flores acorrentadas.
Acudam! Vão me afogar.
Acudam! Vão me matar.
Acudam! Vão me casar.
Numa casa me enterrar
Na cozinha a cozinhar
Na arrumação a arrumar
No piano a dedilhar
Na missa a me confessar.
Acudam! Vão me casar
Na cama me engravidar.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar.
Meu marido, meu senhor
Na minha vida a mandar.
A mandar na minha roupa
No meu perfume a mandar.
A mandar no meu desejo
No meu dormir a mandar.
A mandar nesse meu corpo
Nessa minh’alma a mandar.
Direito meu a chorar.
Direito dele a matar.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar,
Acudam! Me levem embora
Quero marido pra amar
Não quero pra respeitar
Quem seja ele – que importa?
Moço pobre ou moço rico
Bonito, feio, mulato
Me leva embora daqui,
Escrava não quero ser.
Acudam! Me levem embora.
No teu leito adormecida
Partirás a navegar.
A navegar partirei
Acompanhada ou sozinha
Abençoada ou maldita
A navegar partirei.
Partirei pra me entregar
A navegar partirei.
Partirei pra trabalhar
A navegar partirei.
Partirei pra me encontrar
Para jamais partirei.
Dorme menina dormida
Teu lindo sonho a sonhar.
Esses exemplos de versos, retirados das histórias de Jorge Amado, mostram que existe uma conexão entre o poeta e o prosador, uma aliança nítida entre o poema na prosa e a música. De tal forma existe o discurso bonito numa linguagem simples, na qual comparecem o lírico, o épico e o dramático para definir o mundo sem preconceitos e prisões. Cheio de emoções e sonhos, já que na vida há sempre os intrincados e sérios problemas.
* Palestra proferida no Cabaré Literário, da Feira Literária Ler Amado, em Ilhéus, promovida pela FUNDACI, em 10.08.2012.