Epílogo

  
Epílogo

Antônio Lopes

Nunca mais o Bar de Barral, os gritos entusiasmados de Dalmiro Freitas, as piadas de Lino Cardoso, a conversa animada de Amilton Almeida, a convivência plácida e carrancuda (até o segundo copo) de Libério Menezes. Não mais a alegria esfuziante de Marcolino Cunha, os “causos” de Joaquim Neves, o riso ingênuo de Raimundo Cruz, a elegância discreta de Manuel Neves... Alberto Hoisel é o único sobrevivente de uma grande estirpe de boêmios, marca de um tempo menos áspero, uma Ilhéus de saudades. E como costuma ocorrer com os líderes, está só, último marinheiro a abandonar o barco.

Lino Cardoso morreu tranquilamente, aos 85 anos, em 1994, depois de muito caçar, muito beber e muito divertir-se. Alciato de Carvalho, bom de mero, barracuda, surubim, aracanguira, garoupa, badejo, paca, tatu, cerveja gelada e conversa quente, deixou a turma em 1989: acostumado a lutar com peixes na ponta do anzol em alto mar, perdeu a luta contra uma trombose mal-intencionada, aos 73 anos; Tandick Rezende, companheiro mais novo, após o enésimo acidente de carro, em 1990, nunca mais foi visto a recitar sonetos e procurar briga (que nunca encontrava) no Bar de Barral; Dalmiro cansou-se do vinho e do uísque, entediou-se de tanto viver e, em 1983, do alto dos seus 92 anos bem bebidos, reuniu a família, avisou que era chegada a hora, engoliu um copo d´água mineral (talvez o único de sua vida adulta), fez uma careta de desaprovação e subiu aos céus; Manuel Neves, o Nego Neves, caçador e bebedor cheio de gingas e negaças, o jornalista e poeta Gerino Passos, Raimundo Cruz, o risonho hoteleiro Jocelyn Macedo, Marcolino Cunha (um que saiu em 1974 e nunca mais voltou para animar a festa com sua clarineta e sua alegria)... O próprio Manuel Arthur (sucessor do velho Manuel Barral), pouco antes de  completar 75 anos, em 1987, transferiu-se, com a mesma discrição e seriedade, para o Cemitério da Vitória. Como a completar esse quadro desolador de novos e indesejados tempos, o Bar Atlântico, sítio sagrado da boêmia da época, estava ameaçado de transformar-se (como de fato se transformou) numa loja de... calçados! Era demais.

Alberto resolveu fazer uma mudança radical de vida: só de birra “arrumou” uma isquemia que o deixou semi-paralisado, deitou-se na cama com fama e tudo, parou de sair de casa, a não ser na cadeira de rodas, assistido pela enfermeira, a mulher e os filhos, não mais bebeu cerveja, virou o anti-Dalmiro Freiras: nada além de água, uma indignidade a manchar sua honrada (e bem molhada) biografia. Em horas mortas da noite, volta e meia acordava rindo a mais não poder, com as graças de Lino, o “hino” de Dalmiro, o papo de Amílton, as quadrinhas de Alciato, não raro com seus próprios chistes. Mas também se cansou desta última brincadeira.

Em 24 de fevereiro, uma quinta-feira cinzenta, percebeu que cumpria três objetivos traçados no ano anterior: viu a chegada do ano 2000, completou 87 anos (até ouviu foguetes, no dia 8 de fevereiro) e participou, no mesmo mês, do aniversário da caçula Ceiça.  Missão cumprida, chutou cadeira de rodas, dispensou enfermeira e doença, entrou resolutamente no seu antigo reduto sagrado, expulsou balconistas e clientes atônitos, depois de chamar a todos de “vendilhões do templo”, ai meu Deus! – reuniu uns amigos novos, bebeu dois ou três engradados de cerveja, jogou bogue com José Alves Pacheco (de quem ganhou) e atirou sobre esta nossa São Jorge dos Ilhéus um monte de epigramas e trocadilhos de que ela andava bem precisada. Dizem que chegou, em momento de entusiasmo, a cantar o “Hino da P.”, singela homenagem a Dalmiro Freitas, mas disso não há prova provada.

Mais tarde, já refletido o sol no mar da Avenida, sem tropeço na língua ou nas pernas, andou pela Marquês de Paranaguá ainda imersa em matinal madorna, pousou os olhos serenos e críticos sobre o vetusto prédio do Diário da Tarde (interrogou-se sobre por onde andaria Otávio Moura), lamentando ausências, desertos e abandonos. Ao sentir os primeiros raios do sol ilheense pensou este dia vai dar praia...”, descobriu um verso de sete sílabas, rimando com caia, baia, Maia, Marambaia, vaia, Sérgio Naya, “paia”, raia, e riu: praia rima com saia, não rima com biquini, maiô de duas peças ou nudismo. A natureza não é perfeita...

Com passos firmes, tomou o caminho de casa, na mão direita uma caixa de bombons pras “crianças”, na esquerda um poema recém-feito, último pedido de desculpas a D. Ivany, por mais um atraso “involuntário”...
Chegado em casa são e salvo, cantou, contou piadas, sorriu, deitou, morreu e subiu aos céus, onde foi recebido por um São Pedro bonachão, tendo na boca risonha um verso de Manuel Bandeira:

 – Entra, Alberto. Você não precisa pedir licença...

(Solo de trombone – Ditos & feitos de Alberto Hoisel. Ilhéus: Editus/Uesc/2001 – pág.193).