MONSTRO DO SÉCULO XXI




OS TENTÁCULOS DO MONSTRO DO SÉCULO XXI: O GRANDE DESAFIO

* Marcos Bandeira


            Cada momento histórico guarda suas próprias peculiaridades, o seu sistema filosófico, as tradições, a sua economia, o sistema normativo, o seu povo, e também os inimigos do Estado e da sociedade. O Brasil, na época do regime político ditatorial, elegeu o “subversivo”, segundo os padrões normativos impostos pelos militares, como “inimigo do Estado”, o qual deveria ser extraditado ou eliminado para o bem da segurança nacional. O fenômeno da globalização da economia, em face de sua política perversa e excludente no mundo contemporâneo, elegeu o miserável, que não tem capacidade de consumir, como objeto descartável e, portanto, inimigo do sistema.
            A humanidade assistiu, perplexa, impotente e amedrontada, o holocausto produzido pela Alemanha nazista do soberano Adolf Hitler, que massacrou mais de seis milhões de judeus inocentes. Vidas que foram separadas de seus entes queridos e covardemente sacrificadas. É importante frisar que todo o processo do holocausto se deu dentro da lei alemã ou do código penal nacionalista alemão. O art. 48 da Constituição Alemã, que foi uma cópia mal reproduzida da Constituição Prussiana, permitia ao delegado do governo alemão suprimir , em caso de conflagração, os direitos fundamentais dos cidadãos, em face da anormalidade da vida social provocada pela guerra, o que ele denominava “estado de necessidade” para fundamentar o estado de exceção. Ocorre, entretanto, que o dispositivo da Constituição Prussiana estabelecia o decreto do estado de sítio, estabelecendo a forma , o prazo e os direitos que seriam suprimidos naquele período, enquanto o III Reich simplesmente, com a ajuda intelectual do grande teórico alemão Carl Schmitt, decretou um estado de exceção atemporal e ilimitado, outorgando, assim, amplos poderes ao então comissário do Estado, Adolf Hitler, que agora se tornava o todo poderoso soberano do Estado Alemão. Todo o poder para ser legitimado necessita ser justificado. O poder alemão estava justificado no poder carismático e soberano do líder Hitler, fundado na teoria política de Carl Schmitt (1888-1985), que engenhosamente construiu os fundamentos da ação política de Hitler.
            Alguns dos postulados de Carl Schmitt estabeleciam que, em caso de conflagração externa, o Estado deveria declarar guerra para eliminar o inimigo e, em caso de conflitos internos, a resposta seria a extradição ou a eliminação do inimigo. Vê-se que o povo judeu foi eliminado pelo Estado Alemão não pelo que eventualmente fazia, mas pelo que era - judeu -, ou seja, vigorava, naquela época, o denominado direito penal do autor, e não do fato, como ocorre atualmente nos países civilizados, inclusive no Brasil.
            No momento atual, se estamos livres e distantes de eventos trágicos como o holocausto, que envergonhou e chocou toda a humanidade, encontramo-nos emaranhados na rede perversa e poderosa do crime organizado, principalmente dos traficantes de drogas, os verdadeiros monstros do século XXI. Os tentáculos estão por toda a parte e se estendem de norte a sul do país, em cidades grandes e cidades de pequeno porte. Eles estão entranhados infelizmente no Estado Legal também e se mostram visíveis nas diversas esferas de poder, principalmente nas esferas política e judicial, quando se percebe as relações perigosas de verdadeira cumplicidade entre traficantes e advogados. Alguns advogados sabem que o dinheiro dos seus honorários é proveniente de atividades ilícitas – tráfico de drogas – e mesmo assim defendem ardorosamente seus clientes, no sentido de colocá-los em liberdade a qualquer custo.  Eles, os traficantes, são os grandes inimigos do Estado e da sociedade do século XXI, e não estão preocupados com os valores, interesses ou normas de conduta impostas pelo Estado. A sua lógica é diversa e seus valores são outros. No seu tribunal, o julgamento e a execução são sumários. Prepondera o princípio do silencio e do sigilo. Nada deve ser revelado nem escrito. A resposta a quem não cumpre as regras do jogo é a eliminaçao. Observa-se que os traficantes utilizam os mesmos postulados de Carl Schmitt, ou seja, contra os inimigos deve ser utilizada a extradição ou a eliminação.
            Estamos perdendo as nossas crianças e adolescentes para o tráfico de drogas. O traficante, muito mais organizado e atuante, ocupa o espaço deixado pelo Estado e oferece dinheiro fácil ao jovem miserável, que acaba sendo usuário e “aviãozinho“ de traficantes. Infelizmente, o dinheiro desviado pela corrupção, e que engorda a conta bancária e o patrimônio do político desonesto, está fazendo muita falta, pois dezenas de projetos sociais deixaram de ser implementados, principalmente nos bairros periféricos das grandes e médias cidades brasileiras. Embora não se tenha uma estatística confiável, é estarrecedor o número de crianças e adolescentes que são mortos pelos próprios traficantes ou em “confronto” com a Polícia. Trata-se de um verdadeiro extermínio e deveria merecer um estudo mais aprofundado das entidades que defendem a bandeira dos direitos humanos. O traficante está agora adentrando as escolas e cooptando o jovem estudante. O ensino, o ambiente escolar já não conseguem ser atraentes para o jovem, que é então seduzido pelo discurso do traficante que lhe oferece dinheiro suficiente e fácil para atender suas necessidades de consumo e até, em alguns casos, para auxiliar sua própria família. O jovem é recrutado para vender, principalmente, pedras de crack, que lhe rendem dinheiro suficiente para atender suas necessidades de consumo.  Agora ele já usa tênis de marca, celular e até já comprou uma moto. Às vezes ele mesmo compra as pedras de crack do traficante e sai para revender, ganhando ainda mais. A situação se complica quando a própria mãe ou o pai, ou ambos, está(ão) envolvido(s) e estimula(m) ou comercializa(m) também a droga.  Se a entrada no mundo da droga é sedutora, a saída é desesperadora, pois o direito penal não escrito funciona efetivamente. A eliminação é a única resposta que o traficante tem para oferecer àquele que tenta abandonar o mundo das drogas.
            O ato infracional praticado pelo adolescente que está envolvido com o tráfico, seja roubo, furto ou mesmo tráfico, não diz nada absolutamente e nem representa o grande problema. O problema é a forma , muitas vezes, que ele utiliza para pagar a dívida com o traficante. O traficante jamais fica no prejuízo. A lógica é shmittiana. Se ele não pagar, será a partir de agora inimigo, e por essa razão deve ser eliminado em nome da segurança da rêde.
            J tem apenas 15 anos, mas quando possuía 13, saiu com alguns conhecidos e amigos dos conhecidos, indo a uma festa. Nesta festa, a polícia fez uma abordagem e encontrou certa quantidade de drogas e armas com seus “conhecidos”, dando ordem de prisão a todos, inclusive a J, e os conduzindo à Delegacia de Polícia, onde ficaram detidos. J foi libertado, por não ter qualquer envolvimento com o caso, mas os outros não só permaneceram presos, como foram condenados. Os conhecidos de J eram traficantes e ficaram irados com ele, e por acreditarem que ele foi o “alcaguete”, ameaçaram matá-lo. J mudou de bairro, saiu da escola e, hoje, já mais de dois anos depois, não sai de sua casa para lugar nenhum com medo de ser morto pelos traficantes. J é uma pessoa assustada, amedrontada, de pele pálida, em face do confinamento a que foi submetido.
            L tem 16 anos, é usuário de crack e está sentenciado para morrer, pois deve R$ 400,00 a um traficante e não dispõe de condições de pagar. Já praticou o furto de um celular, que lhe rendeu apenas R$ 50,00, e por esse fato foi preso e responde perante a Justiça da Infância e Juventude. Diante das ameaças, a mãe do jovem, desesperada, tentou negociar com o traficante, e dar-lhe alguns pertences, mas o traficante quer dinheiro ou partes do corpo do adolescente, tendo proposto amputar dois dedos e um braço pelo resgate completo da dívida, sendo R$ 200,00 pelos dois dedos e R$ 200,00 pelo braço. A mãe tem o prazo até o final do mês para aceitar a proposta ou pagar, em dinheiro, a dívida. Caso contrário, o traficante já adiantou que lhe entregará a cabeça de L no dia marcado. L é usuário e dependente, o que obriga a mãe até a comprar a droga para combater a crise de abstinência do filho. A condição humana é desprezada completamente pelo traficante e o princípio kantiano da dignidade humana é esgarçado e desprezado pelo monstro do século XXI, que transforma o ser humano numa moeda de troca.
            Abrão, com apenas 14 anos, foi apreendido furtando um celular. Ele estava na sala de audiências, na frente do juiz, do promotor, advogado e serventuários. Abrão olhou para o juiz e disse desesperadamente, quase chorando: “Doutor, pelo amor de DEUS, me interne. Eu sou usuário e dependente de crack. Meu pai morreu há três meses por overdose de crack, e minha mãe, no dia em que pai morreu, quebrou a perna e está em casa. Eu passo o dia tomando conta de carro. Se eu voltar para a rua, os caras vão me procurar e eu vou acabar voltando para as drogas. Eu não quero mais isso, doutor, me interne, por favor, me mande para Salvador, Feira de Santana, para qualquer lugar, mas não me deixe mais aqui. Eu não quero morrer agora.
            Essas palavras do jovem aflito, que estava ali à nossa frente, calavam fundo em nossos corações. Era um pedido de socorro. O ato infracional praticado por ele já não despertava maiores atenções, considerando que qualquer medida socioeducativa eventualmente aplicada seria inócua, pois não produziria o efeito socioeducativo idealizado pela norma. Na verdade, aquele jovem precisava muito mais de tratamento do que de punição. A vida sub-humana que leva já é o suficiente como castigo. Estudara até a 7 ª série e demonstrava uma certa desenvoltura intelectual, apesar do  aspecto  raquítico de seu corpo físico.  Olhávamo-nos, o promotor, o defensor público, o serventuário, procurando, impotentes, uma solução para o caso. Onde internar? Ligamos, em plena audiência, para Feira de Santana, mas o Estado rompeu o convênio com a Casa da Rainha. Não dispúnhamos de grandes alternativas, e resolvemos encaminhá-lo, provisoriamente, para a entidade Renascer, em Itabuna, que trabalha na recuperação de jovens drogados, com base na metodologia religiosa, aplicando uma medida protetiva de tratamento a toxicômanos, conforme previsto no art. 101, VI do ECA.
            Em alguns bairros de Itabuna, os traficantes decretaram o toque de recolher, de sorte que nem o cidadão, nem qualquer representante do Estado constituído adentra nesses espaços a partir de determinado horário, sob pena de ser abatido. Alguns traficantes quando percebem que o adolescente está saindo do mundo das drogas e que voltou a estudar ou que já está sendo inserido no mercado de trabalho, sai no seu encalço e em alguns casos – muitos – acabam ceifando a sua vida. Quantos pais não presenciaram, este ano, em Itabuna, seu filho ser arrancado de sua própria casa e ser morto a tiros na sua presença sem poder fazer absolutamente nada, a não ser chorar? Como enxugar as lágrimas de uma mãe que criou seu filho, fez planos de futuro, deu carinho e amor e, de repente, o perdeu para os tentáculos portentosos do grande monstro do século XXI? O que se deve fazer numa situação dessa? Cumprir a medida socioeducativa do adolescente envolvido com o tráfico que cometeu algum ato infracional terá alguma eficácia? Será que o adolescente não corre o risco de vida cumprindo a medida? Como enfrentar esse inimigo poderoso, cujos tentáculos venenosos estão por toda a parte? Como salvar a vida desses adolescentes, que estão na rede, e na iminência de serem devorados pelo grande monstro? Como devemos agir? Obviamente que a resposta do Estado ao ato praticado nessas situações já não tem tanta importância, pois o objetivo é mantê-lo vivo e longe dos tentáculos do traficante.Como a educação pode mudar ou transformar a vida desses jovens envolvidos com a droga?  Evidentemente que o encaminhamento, a orientação e o monitoramente de uma equipe interdisciplinar não devem ser descartados, todavia, a sua linha de atuação deve estar voltada, em primeiro lugar, para a proteção do adolescente, ou seja, para medidas que assegurem a vida desses jovens.
            Acredito que o Estado deve criar mecanismos de proteção para esses adolescentes, criando aparatos similares aos existentes para a proteção de vítimas de crimes, criando mecanismos de proteção e oferecendo condições de promoção social para o adolescente e sua respectiva família, no sentido de que possa viver com dignidade em outro lugar, com toda a segurança, pois, caso assim não proceda, continuaremos a perder nossas crianças e adolescentes para o monstro do século XXI. Todo esse trabalho de proteção deve ser acompanhado de um projeto pedagógico que seja capaz de introjetar valores que promovam, social e culturalmente, o adolescente, propiciando as condições para que reescreva como protagonista a sua própria história.
 A Polícia deve otimizar a investigação criminal para identificar os grandes traficantes, mas isto não basta , pois a legislação penal e processual penal precisa modificar-se para tratar com mais rigor o maior inimigo do Estado, que tem como lógica de ação matar a esperança de um país, que são as crianças e os adolescentes de hoje.


* Marcos Antonio Santos Bandeira é Juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Itabuna-BA, membro da coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia. Professor da disciplina de Direitos da Criança e do Adolescente e de Direito Processual Penal da UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz -, coordenador do Núcleo Estadual do Observatório Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – NOBECA, da UESC. Especialista em Direito Processual Civil e Ciências Criminais e doutorando em Direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora , Buenos Aires.
Autor de vários livros na área da infância e de vários artigos em revistas especializadas, é Membro da Academia de Letras de Itabuna