REVISTA HISTÓRICA - Artigo publicado na edição 20 de março de 2007 - A polêmica literária no final do oitocentos brasileiro

Livraria Garnier - Rua do Ouvidor


Milena da Silveira Pereira
"Esse discurso acerca da necessidade de se ter uma crítica acirrada e de se manter polêmicas foi sempre um dos traços característicos dos intelectuais do tempo. Brito Broca, um conhecedor de longa data da história social de nossas letras, nesse sentido, ressalta que a polêmica fez parte do quadro de costumes literários da época, ou seja, a polêmica, para os letrados do final do século XIX e início do XX, foi tomada como um gênero literário e muitas vezes como o principal meio de propagação de idéias. Era a polêmica, como nos mostra Carlos Süssekind de Mendonça,"o entretenimento predileto dos intelectuais” do final do Oitocentos, isto é, o intelectual desse período que queria aparecer, explica Mendonça, "já sabia o recurso mais eficiente de que dispunha: aguardava uma oportunidade para entrar em polêmica com quem quer que fosse, a propósito dos assuntos em que se sentisse mais à vontade".

"A necessidade de afirmação desses letrados do final do Oitocentos era tão forte que Machado Neto, em seu estudo sociológico sobre a vida intelectual brasileira, vai afirmar que “o pequeno público leitor tinha de ser disputado, o que envolvia o grupalismo, a guerra de cotéries literárias, a polêmica, os elogios mútuos, as metáforas bélicas”. Essa idéia, a propósito, de disputa, luta e polêmica é sustentada, como declaram os intelectuais da época, em grande medida, pela teoria evolucionista, a qual justificava a violência de tais debates como necessária à propagação das novas idéias e ao aperfeiçoamento cultural e social. Afinal, segundo Roberto Ventura, "na ótica de Romero e de seus contemporâneos, cabia à polêmica contribuir para o processo de seleção e depuração das obras e escritores, lançados ao público na luta pela existência”.

"Assim sendo, Brito Broca, no seu esforço de apresentar uma história social de nossas letras, vai afirmar que a vida literária no final do XIX e início do XX sobrepujou a literatura e que as polêmicas se colocaram mais no terreno da vida literária do que da literatura. Havia, segundo Broca, uma necessidade entre os intelectuais do período de viver a literatura, ou seja, estes homens buscavam “literalizar o trato cotidiano da existência”. Esse viver a literatura, especialmente pelos boêmios, se fazia, em grande parte, na Rua do Ouvidor – “estreita ágora mundana e literária onde se faziam e desfaziam os mitos e os prestígios da vida intelectual." Ali  se encontravam os principais cafés, confeitarias, jornais e livrarias, os quais possuíam, em certa época, cada um a sua “igrejinha” efetiva. O mais famoso dos estabelecimentos, de acordo com os estudos sobre a vida literária, foi a Livraria Garnier, onde se reunia o grupo de Machado de Assis. Este, que nunca freqüentava os cafés ou as confeitarias, se encontrava na Garnier todas as tardes com José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Coelho Neto, Taunay, Nabuco e outros, para um café, depois do fechamento da Revista Brasileira. Dessas tertúlias nascera, tempos depois, a Academia Brasileira de Letras. João Luso, a propósito, em seu A Sublime Porta, para ilustrar o papel da Livraria Garnier, escrevia que: ficar ali de perna trançada, o ombro contra o batente, as duas mãos solidamente apoiadas no castão da bengala, eis a decisiva demonstração de talento ou de valor que a história exige para conscientemente se pronunciar."

"Nessa luta pela vigência das coteries ou igrejinhas, os intelectuais, na maioria das vezes, se posicionam no elogio dos amigos, ou seja, os amigos eram sempre uns gênios, escritores de talento, homens brilhantes, além de outros tantos adjetivos mais. Qualificar, assim, de gênio o escritor amigo era quase tão trivial como uma qualquer regra de polidez e, em contrapartida, ao elogio para “os nossos”, correspondia o ataque e perseguições aos “deles”. Silva Ramos em seu depoimento a João do Rio chegou a declarar que o principio fundamental da crítica entre nós era o seguinte: “os nossos amigos são uns gênios, os outros são todos uns alarves”.

E nesse fogo cruzado dos elogios mútuos, Coelho Neto, em seu A Conquista, interroga que “se não aparecer um homem de coragem que se ponha à dominação da grei dos turiferários ficaremos reduzidos a que, faça favor de dizer, a que?” E responde que há de “ser implacável. Se tivessem talento, muito bem, mas são todos uns nulos, sem originalidade, sem estilo e pretensiosos como tudo. Chefes!...Ora pelo amor de Deus!”. Sílvio Romero, a propósito, salienta que: se algum merecimento me pode caber como crítico e historiador literário é ter sido sempre o defensor constante dos talentos provincianos contra a estreiteza de espírito revelada pelos criticalhos do Rio, no menosprezo sistemático que tem por norma contra todos os que não fazem parte da panelinha do elogio mútuo, em que se dessoram a si próprios e fazem moer quantos lhes são adversos, nomeadamente os bons escritores provincianos”.

A guerra das “panelinhas” literárias, a polêmica, a troca de elogios, as metáforas belicosas foram, então, algumas constantes perceptíveis nos escritos dos intelectuais do tempo. Machado Neto, nesse sentido, declarou que “raro era o homem de letras e até, mesmo, o homem público que tivesse passado a vida sem experimentar a vivência belicosa da polêmica”. E não somente havia o polemista, vale pontuar, mas ainda um público das polêmicas. Segundo Machado Neto, nos jornais, os polemistas “representavam para um público que aplaudia e fazia prognósticos e – quem sabe?! – até... apostas”. Esse público das polêmicas acompanhava fielmente as disputas, com uma atenção quase esportiva, e se constituíram como um “auditório ressonante que assistia diariamente aos grandes lances polêmicos das vedetas da pena”.

Diante dessas colocações sobre o papel da polêmica no universo literário do final do Oitocentos brasileiro, vale indagar: qual era o principal meio de divulgação dessas polêmicas? Destaque especial merece o jornal, o qual deu condições necessárias para a existência de uma vida intelectual tão intensa no Brasil. João do Rio, a propósito, em seu inquérito literário perguntou a todos os entrevistados os efeitos do jornalismo para a literatura. Olavo Bilac, por exemplo, responde que “o jornalismo é para todos os escritores brasileiros um grande bem. É mesmo o único meio do escritor se fazer ler. O meio de ação nos falharia absolutamente se não fosse o jornal”. Sílvio Romero, igualmente, declara que “o jornalismo tem sido o animador, o protetor, e, ainda mais, o criador da literatura brasileira. É no jornal que tem todos estreado os seus talentos; nele é que tem todos polido a linguagem, apreendido a arte da palavra escrita”. Declara ainda que é pelo jornalismo que “os homens de letras chegam a influir nos destinos deste desgraçado país entregue, imbele, quase sempre à fúria de politiqueiros sem saber, sem talento, sem tino, sem critérios, e, não raro, sem moralidade”.

Ao contrário desses entusiastas do jornal, Clóvis Beviláqua, em seu depoimento, afirma não ser muito simpático ao jornalismo. Alega, sem negar o seu valor cultural, que daqueles “que nele trabalham, esgota as energias, dispersa os esforços e alimenta a superficialidade”, e, em contrapartida, aqueles “que nele bebem idéias, mais vezes perturba do que orienta, mais vezes agita paixões do que esclarece opiniões”. E completa, “é uma forte projeção de luz envolvida em densa fumarada”. Do mesmo modo, Guimarães Passos vai asseverar que o jornalismo é “péssimo. O Jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde há trocos; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo”.

Malgrado seja possível notar, no inquérito de João do Rio, apologistas e críticos do jornalismo, não se pode negar o valor que o jornal teve nessa época. A colaboração para a imprensa se apresentava como uma trilha concreta em direção à profissionalização dos escritores e ao aumento de prestígio e influência política desses homens de letras. Sérgio Miceli, por exemplo, em seu livro Poder, Sexo e Letras na República Velha, afirma que “toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais”.

Além disso, Flora Sussekind, em Cinematógrafo de Letras, pontua que a linguagem do literato no final do XIX foi tomando uma dimensão de escrita jornalística, ou seja, o “simples fato de trabalharem na imprensa diária, em contato com a visão de cada dia como condensação privilegiada da História, parece sugerir a esses poetas uma espécie de forma literária de passagem, moldada no jornal”. Esses intelectuais não só conceberam um novo estilo de escrita, a jornalística, como também criaram, nesse período, um vocabulário beligerante próprio.

George Ermakoff, igualmente, declara que houve uma “transmutação de pacatos intelectuais em guerreiros da palavra”. Guerreiros estes que transformaram a linguagem da crítica em um jargão de guerra, criando um vocabulário específico para se referirem tanto à vida literária como às suas obras e os títulos de suas obras. De acordo com Machado Neto, por exemplo, para se referirem a carreira literária, as palavras eram “liça, luta, embate”, para falar da ascensão literária “fala-se sempre em batalha, pugnas, combates”. Esses viperinos do final do Oitocentos, portanto, criaram uma linguagem bélica própria e exemplos desse vocabulário foi o famigerado neologismo polêmico de Sílvio Romero, Zeverissimações, em sua obra de ataque a José Veríssimo, ou alguns títulos de suas obras, como Doutrina contra Doutrina, Provocações e Debates. Tais títulos biliosos, todavia, não eram encontrados somente nas obras de Sílvio Romero, mas também em livros como o de Lúcio de Mendonça, intitulado Vergastas, ou na obra de Valentin Magalhães, com o título de Cantos e Lutas, entre outros.

Mas os considerados campeões de polêmicas, no terceiro quartel do século XIX, foram: o já apresentado Sílvio Romero, bem como Medeiros e Albuquerque, que teve suas polêmicas compiladas pelo filho e lutou com grande parte da intelectualidade da época, como, por exemplo, João do Rio e Rui Barbosa; e Carlos de Laet – apresentado, muitas vezes, como um lendário do jornalismo combativo, um polemista até a morte – marcou, igualmente, o cenário de polêmicas com a sua célebre batalha com o português Camilo Castelo Branco, o famoso “polemista invencível”. Todos esses homens possuíam personalidades fortes e conduziram com agressividade sua vida literária. Todavia, Sílvio Romero foi considerado, pela historiografia sobre o período, o mais constantes dos polemistas nacionais.

Esse título recebido por Romero, nesse sentido, pode ser tomado como umas das razões de sua fama ter chegado ao ponto de contemporâneos como Chrysanto de Brito declararem que "ouvia falar do autor da História da Literatura Brasileira como destes destruidores terríveis, cujo fim é sempre a demolição", ou seja, "como destes homens que transformam a pena sistematicamente numa arma de combate, pelo prazer somente de destruir e arrasar". Clovis Beviláqua, ao contrário, grande amigo de Romero, vai defendê-lo afirmando que “caía sobre as cabeças abaçanadas uma atmosfera de luta; e esse meio eletrizante sacudia todos os nervos e incitava coragem a todos. Sílvio Romero, que era uma organização talhada para a vida gnostica das letras, abraçou-se naquela febre”.

A bem da verdade, havia sim outros meios de se adentrar na vida literária naquele tempo. Nas palavras de Felix Pacheco, afora a luta e a demolição do adversário para entrar no meio, “o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil – elemento seguro e infalível para a subida rápida”, como bem nos ensina, vale lembrar, Machado de Assis, em seu clássico conto A Teoria do Medalhão.

A análise dos escritos dos homens de letra do final do século XIX e mesmo os estudos sobre a vida literária do período nos mostram, ao fim e ao cabo, a presença de um padrão de escrita polêmico, ou seja, a polêmica, nesse período, se tornou um traço estruturante da produção intelectual. E Sílvio Romero, apesar de sua vultuosa obra de polêmica e sua pejorativa fama, fez coro a seus contemporâneos e compartilhou das práticas consolidadas pelos homens do seu tempo."