CÓDIGOS DA PELE - Ruy Póvoas

ILÊ AXÉ IJEXÁ ORIXÁ OLUFON
ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA ALITA




CÓDIGOS DA PELE
Homenagem ao Dia da Consciência Negra
18 de novembro de 2012

Comunicação: Literatura oral nos terreiros: consciência e resistência
Ruy Póvoas ‒ Mestre em Letras Vernáculas, escritor, poeta e babalorixá

            Sejamos todos bem vindos com a graça de Deus. O Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, terreiro de candomblé de origem nagô, de nação ijexá, recebe a todas as pessoas aqui presentes ou representadas, de peito aberto e coração fluindo vida, saúde, paz e sossego.
            Aqui, estamos realizando, pela primeira vez, em solo brasileiro um evento de tal natureza: uma parceria entre uma Academia de Letras e um Terreiro de Candomblé. O nosso objetivo é erguer pontes para que universos antes separados e considerados antagônicos possam, enfim, estreitar o aperto de mão tão necessário às criaturas humanas, para que o reino do céu se estabeleça na terra. Por cima do preconceito, a compreensão; acima do que nos separa, tudo aquilo que nos une.
            Eis que celebramos os Códigos de Pele. A pele, esse tecido mágico que delimita a fronteira entre mim e o outro. Que permite a troca de líquidos com o exterior, sem deixar embebedar o corpo. Que não se encontra igual em loja alguma. Ela, a pele, dotada de consciência específica, sabe das sensações que o mundo externo pode lhe provocar. Entende o frio, lê o calor, percebe o pavoroso e rejeita o desagradável. Ah, os arrepios da pele pelo contato com a pele do ser amado. Ah, a ojeriza causada à pele se houver contato com a pele de quem rejeitamos.
            A pele sabe ler e interpretar o mundo exterior, porque a Criação nela imprimiu códigos que lhe permitem isso. Se na pele das dobras dos braços e das pernas estão portas de saída para as toxinas, na pele do baixo ventre estão gravadas as entradas para o arrebatamento do sexo e seus prazeres. Ah, as vibrações da pele, quando mergulhamos na pele que reveste o corpo de quem desejamos. Bênção das bênçãos, felizes os que podem desfrutá-las.
            Para além da consciência, a pele também se faz resistência. O outro não pode entrar em mim sem que minha pele permita, a não ser nos atos selvagens de desrespeito e de violência. Ela resiste ao sol e à chuva sem se derreter. Estica e encolhe com facilidade, principalmente na melhor idade, isto é, na juventude. E depois, com a morte, se desfaz e se desmancha sem deixar vestígios.
Neste nosso evento, Códigos da Pele, entre outras abordagens, falemos de consciência e resistência. Para o povo de religião de matriz africana, a pele lê o mundo antes dos olhos e dos ouvidos. Muita coisa bate nela e simplesmente não a impressiona. Outras tantas, mesmo de longe são percebidas e gravadas na memória global da pessoa. E faz parte dessa memória um acervo que já se faz milenar, atravessou o Atlântico no bojo do navio negreiro e aqui fez finca pé em consciência e resistência. Consciência porque nos sabemos diferentes e diversos: nem melhores, nem piores, mas outros, apesar de toda perseguição, difamação, rejeição e preconceitos de que temos sido alvos nesses mais de 500 anos. Resistência, porque sabemos qual é o nosso lugar no mundo, mesmo que nos rejeitem. E não aceitamos a ideia de ocuparmos o lugar que a opressão nos destinou. Traçamos até nosso próprio destino, porque aprendemos o valor do que seja a Liberdade.
E dentre os valores cultuados no terreiro que forjam e estruturam esta consciência e esta resistência, avulta-se a nossa Literatura. Porque o nosso código de comunicação básico é a língua oral, também é oral a Literatura que preservamos e transmitimos. E o corpo dessa Literatura expressa sempre consciência e resistência, invariavelmente. Essa é a marca que a distingue e sua expressividade se compõe de casos, dizeres e itans.
Os casos são narrados a qualquer instante, em qualquer canto do terreiro e são motivados por conversa puxa conversa. A sua contação não é planejada e ela acontece, quando se faz necessária. Os casos falam dos feitos dos antepassados, dos ancestrais, das conquistas, da nossa relação de parentesco de axé desde os tempos imemoriais da África. Assim, posso contar:

No início da segunda metade do século XIX, chegou ao Engenho de Santana em Ilhéus uma negra reduzida à condição de escrava, de nome tribal Mejigã. Ela foi trazida à força da cidade de Ilexá, onde era sacerdotisa de Oxum. No engenho, ela recebeu o nome cristão de Inês. E com um negro de origem angolana, ela teve uma única filha, de nome Maria Figueiredo. Maria casou-se com Antônio do Carmo, que veio de Nazaré das Farinhas para Ilhéus, nos tempos em que se juntava dinheiro a rodo na Região do Cacau. De tal união nasceu Ulisses do Carmo que se casou com Hermosa e tiveram 23 filhos. Entre eles, Maria do Carmo, que foi minha mãe. Este terreiro, fundado pelos descendentes de Mejigã, é herdeiro da tradição ijexá, implantada no Sul de Ilhéus, conforme se dizia antigamente.

E os dizeres? Ah, eles expressam sabedoria popular de origem africana, mas o terreiro também preserva dizeres de outras origens, de outras tradições religiosas, pois entendemos que o saber e o conhecimento não têm pátria, não têm dono. Os dizeres são expressos como lições e ensinamentos resultantes de situações de vida em que o mais velho enfatiza para o mais novo um conhecimento que ele precisa aprender. O objetivo visa à conscientização, a fim de que aquele que ouve aprenda a ser melhor consigo mesmo e com os outros. Alguns exemplos:

Enfrentar os monstros é para quem aprendeu a ouvir.
A feiura e a boniteza estão nos olhos de quem vê.
Os grandes são escravos de sua grandeza.
Quem só vive às carreiras vai ter que voltar várias vezes para vencer a agonia.
A lonjura e a demora têm o tamanho da preocupação.
A verdadeira mudança tem acontecer primeiro no coração.
O mal do invejoso é que, além de ele não ter, não quer que o outro tenha.
Ao descuidado come o rendido.
Não se vence batalha apenas com espada na mão. Também se vence com as armas do coração.
Nem tudo é aquilo que parece ser.
Ninguém julgue o bom por bom, nem o mau por mal.
A gente não paga apenas o mal que pratica. Também paga muito caro, as besteiras que comete.
            De nada vale o saber para quem não tem a sabedoria.

            Quanto à terceira marca, os itans, são histórias remanescentes do sistema oracular jeje-nagô. Eles encerram um ensinamento ético ou moral e são narrados oportunamente, para quem precisa compreender o mundo e a vida. A narrativa exige que o narrador saiba dar vida aos diálogos, às personagens e seja enfático na arte de ensinar.  Há incontáveis itans preservados nos terreiros e são de domínio dos mais velhos, daqueles que aprenderam com a vida, mas precisam ensinar a quem ainda não sabe. Eis um exemplo:

O SEGREDO DO OUTRO
            Contam os mais velhos que, naquele tempo, Oxóssi ainda andava pelo mundo caçando. Um dia, ele encontrou um moço bem no fundo da mata virgem, completamente despido, embaixo de uma árvore enorme. Mas Oxóssi é caçador e não é dado a conversa comprida, nem muito menos a querer saber da vida dos outros. Atento aos sinais como ele só, Oxóssi viu que o moço tinha ares de nobreza. Também viu um ebó que o moço tinha depositado ao pé da árvore. No ebó, tinha as roupas e os pertences do moço. Tinha até uma faca, a única arma que o moço possuía. Esse moço era Otim.
            Acontece que Otim estava ali, fugindo da civilização. Ele sempre foi arredio e não gostava de sair de casa, nem da companhia de ninguém. As pessoas vivivam infernizando sua vida, criticando sua maneira de ser e numa eterna insistência para ele sair de casa, passear, fazer amizades. E não aguentando mais aquela situação, Otim resolveu partir às escondidas e se embrenhou na mata.
            Tomado pelo cansaço e pelo sono, Otim passou uma madorna debaixo da árvore. Aí, ele teve um sonho. Uma voz dizia que ele fizesse um ebó com tudo que ele carregava e oferecesse debaixo daquela árvore. Assim mesmo ele fez, ficando despossuído de tudo. Foi quando apareceu Oxóssi, o Grande Caçador, carregando várias caças abatidas.
            Aí Oxóssi apanhou a faca que estava no ebó, preparou uma roupa com peles das caças que trazia e deu para Otim se vestir. Cortou pedaços de carne, fez fogo e preparou comida para ele e Otim. Depois, Oxóssi fez uma cabana e ficou uns tempos por ali, caçando. Otim resolveu, então, permanecer com ele. Oxóssi ficava calado e Otim, completamente em silêncio, observava tudo que Oxóssi fazia.
            Oxóssi fazia arcos, preparava as flechas, treinava vezes sem conta, atirando em alvos difíceis. Fazia as armadilhas para pegar os bichos, preparava a comida, mantinha a cabana em ordem. Otim foi passando de simples observador a ajudante. Com o tempo, Oxóssi passou a dividir as tarefas com ele.
            Quando Oxóssi percebeu que Otim já sabia fazer um bocado de coisas, partiu para outro lugar e Otim seguiu seus passos. O rapaz fino e educado, arredio, de gestos comedidos, foi se transformando num verdadeiro caçador, homem da mata. E Oxóssi nunca lhe fez pergunta alguma sobre sua vida e por que tinha resolvido viver na mata. Nem sequer comentou nada, quando surpreendeu, um dia, Otim tomando banho num riacho. O mistério de Otim então apareceu: ele era homem, mas tinha um corpo de moça. Mais ainda: tinha quatro mamas. E isso tinha sido causa de seu sofrimento, se escondendo do mundo. Oxóssi nada disse, nada comentou, nem mostrou espanto. Aí, Otim perdeu a vergonha de ser como era, se aceitou e passou a conversar.
            Um dia, Otim disse a Oxóssi que já estava pronto para seguir seus próprios caminhos. Agora, ele se conhecia e sabia lidar com os outros, porque tinha aprendido a lidar consigo mesmo. Ambos se despediram e cada um seguiu adiante, sozinho. Mas até hoje, eles se encontram de vez em quando, para caçar juntos. Por causa disso, muita gente confunde os dois como se fossem o mesmo caçador, apesar de serem tão diferentes.
            Pois é: o outro deixa de ser estranho, quando é recebido naturalidade.

            Este é apenas um retalho mínimo de um patrimônio riquíssimo, preservado nos terreiros e que a sociedade hegemônica, por preconceito, varreu para os esconsos do Brasil profundo. E que este evento, Códigos da Pele, sirva de um abrir de portas, de um gesto que se faz ponte sobre o abismo da separação, para que este universo da cultura afrodescendente, em Itabuna, venha a ser admirado por quantos compreendam o gesto inusitado da ALITA, que se faz luz neste dia de hoje.