INTELECTUAIS VÃO A TERREIRO DE CANDOMBLÉ ABRIR FESTEJOS PELA SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

 


Por Celina Santos


Ivete Sacramento, a primeira reitora negra do Brasil, evidenciou a importância da libertação a partir da literatura; Cerca de 150 pessoas, entre acadêmicos e profissionais de diversas áreas, compareceram ao evento (Foto: Lília Santana)
Ivete Sacramento, a primeira reitora negra do Brasil, evidenciou a importância da libertação a partir da literatura; Cerca de 150 pessoas, entre acadêmicos e profissionais de diversas áreas, compareceram ao evento (Foto: Lília Santana
Naquele lugar bucólico, cheio de árvores, flores e gramas, numa visível exaltação à natureza, o chamado "povo de santo" desfila com exuberantes roupas e turbantes brancos, ao tempo em que canta e dança sob o batuque do tambor; na plateia, uma maioria aparentemente branca, formada por advogados, juiz, médicos, professores, intelectuais e até intercambistas vindos da gelada Áustria. Em poucas palavras, esse foi o cenário do evento batizado como "Códigos da Pele", promovido no último domingo (18), pela ALITA (Academia de Letras de Itabuna), para marcar o início das comemorações pela Semana da Consciência Negra.
O lugar escolhido para sediar a festa foi o terreiro Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, cujo responsável é o escritor, professor e babalorixá (pai de santo) Ruy Póvoas. Grande cicerone do evento, ele cantou, dançou e abriu as portas da casa, para mais uma vez mostrar o quão belo pode ser o exercício de se respeitar as diferenças, sobretudo, nos aspectos cultural e religioso. "A feiura e a boniteza estão nos olhos de quem vê", sentenciou, ao mencionar itans (contos) que regem a filosofia de vida dos adeptos do candomblé.

"Negro é quem se sente negro"
Um dos pontos mais altos do verdadeiro sarau resultante da parceria terreiro/ALITA foi a palestra da professora-mestre Ivete Sacramento. Veemente defensora da ocupação de espaços e das conquistas do povo negro, a educadora foi a primeira reitora negra do Brasil, ao assumir a gestão da UNEB (Universidade do Estado da Bahia). Foi exatamente na época em que a instituição começou a implantação do sistema de cotas.
Num discurso bastante reflexivo, Ivete Sacramento lembrou ser aquela Academia a primeira do país, quiçá do mundo, "a reconhecer a importância da literatura negra para a Consciência Negra" e, com isso, escolher um terreiro de candomblé para sediar uma comemoração desse tipo. "Esse encontro de hoje é inédito, hoje aqui é uma vitória", celebrou.
Premiada e respeitada por sua militância em favor dos "não-brancos", ela ressaltou a importância de se abrir espaço também para a literatura negra. Citou autores renomados, como Adam Ventura, Boaventura Santos, Luiz Cuti e Oliveira Silveira, que se tornaram famosos no exterior antes mesmo de serem conhecidos no Brasil.
"Só com as ações afirmativas isso começa a aparecer; com a lei 10.639, aparece essa literatura de resistência, de denúncia, de resgate, é a literatura de um sujeito marcado pela discriminação. Essa literatura é uma nova forma de libertação negra, é de um povo que se liberta. Antes o negro só era visto de forma pejorativa; hoje o pejorativo é crime", comentou.
Mencionando palavras do escritor Luiz Cuti, ela frisou que "negro é quem se sente negro". Daí a razão pela qual foi utilizada a alcunha de afro-brasileiro para que as pessoas se autodeclarassem – sem preconceitos – merecedoras de ser beneficiadas pelas cotas na Uneb. "Ser negro é sentir-se negro", ratificou, antes de receber efusivos aplausos das 150 pessoas ali presentes.
A ALITA assinou, junto com o terreiro, a realização do sarau “Códigos da Pele” (Foto: Lília Santana)A ALITA assinou, junto com o terreiro, a realização do sarau “Códigos da Pele” (Foto: Lília Santana)
Reconhecimento e resgate
Sônia Maron, presidente interina da ALITA, anunciou que esse foi apenas o primeiro de muitos eventos que a Academia pretende realizar anualmente na Semana da Consciência Negra. A ideia, segundo ela, é que a programação seja ampliada a cada nova edição. "É preciso reconhecer que a cultura negra é o berço do Brasil, eliminar a discriminação velada que existe e mostrar que as mãos brancas não são diferentes das mãos negras e mulatas que construíram esse país", disse.
Também integrante da Academia, o juiz Marcos Bandeira afirmou que o evento no terreiro "é uma forma de resgatar essa dívida grande com a cultura afrodescendente". Evidenciou a beleza de tal manifestação e a importância de ela ser reconhecida.

Teatro e música para completar

A música, que não poderia faltar naquele sarau, além da vibrante cantoria dos filhos do terreiro, ficou por conta das bandas Café com Leite e Açúcar e Manzuá. Entre as canções entoadas, letras de incentivo à autoafirmação, como uma que sentencia: "é preciso para o povo preto crescer e ser fortalecido". As apresentações foram intercaladas por recitais de poesia, sob a batuta das poetisas Alba Cristina e Daniela Galdino.
Outro momento de emoção foi a apresentação teatral assinada pelos grupos Vozes e Trilhas Teatrais, com os atores Aldenor Garcia, Jorge Batista, Lucas Oliveira, Maria Olívia, Sílvia Smith e Iara Leandro. Recitando e teatralizando o poema "Magia Negra e Feitiço de Branco", de Sérgio Vaz, o itabunense Lucas Oliveira chamou para a reflexão – e fez adendos para valorizar nomes regionais, como Alba Cristina, Walmir do Carmo e Romilton Teles. Afinal, o texto elenca uma série de personagens negros, donos de algo verdadeiramente mágico. Dizem os versos:
"Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina...
Magia negra é Djavan, Emicida, Mano Brown, Thalma de Freitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Jam. Magia negra é dona Edith recitando no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas duas pernas mágicas e negras. James Brown. Milton Santos é pura magia.
Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão.
Michael Jackson e Jordan é magia negra. Cafu, Milton Gonçalves, Dona Ivone Lara, Jeferson De, Robinho, Daiane dos Santos é magia negra.
Fabiana Cozza, Machado de Assis, James Baldwin, Alice Walker, Nelson Mandela, Tupac, isso é o que chamo de magia negra.
Magia negra é Malcon X, Martin Luther King, Mussum, Zumbi, João Antônio, Candeia e Paulinho da Viola. Usain Bolt, Elza Soares, Sarah Vaughan, Billy Holliday e Nina Simone é magia mais do que negra.
Eu faço magia negra quando danço Fundo de Quintal e Bob Marley.
Cruz e Souza Zózimo, Spike Lee, tudo é magia negra neles. Umoja, Espírito de Zumbi, Afro Koteban...
É mestre Bimba, é Vai-Vai, é Mangueira todas as escolas transformando quartas-feira de cinza em alegria de primeira.
Magia negra é Sabotage, MV Bill, Anderson Silva.
Pepetela, Ondjaki, Ana Paula Tavares, João Mello... Magia negra.
Magia negra são os brancos que são solidários na luta contra o racismo.
Magia negra é o RAP, O Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Africabambaataa.
Magia negra é magia que não acaba mais.
É isso e mais um monte de coisa que é magia negra.
O resto é feitiço racista".

Além do já citado juiz Marcos Bandeira e sua esposa, a advogada Rosana Bandeira, diretora da Fundação Reconto, estiveram presentes o presidente da OAB-Itabuna, Andirlei Nascimento, a delegada Sione Porto, o casal de médicos João Otávio e Zina Macedo, além de outros advogados, professores, escritores, a ialorixá Mãe Vanda, representantes da "Marcha das Vadias", entre tantos outros. Ao final, todos se confraternizaram em torno do abará, do acarajé e de tantas delícias ali ofertadas. O chamado "povo de santo" é acolhedor, hospitaleiro e, em cada sorriso, pode-se sentir a saudação: "Você é muito bem vindo nesta casa". E viva a Consciência Negra, mais uma vez celebrada neste 20 de novembro!