MÁGOAS EM COPOS DE CHOPE - Hélio Pólvora





MÁGOAS EM COPOS DE CHOPE


Hélio Pólvora


Dizia Paulo Francis, aquele do Diário da Corte, que intelectual não vai à praia; vai ao bar. O bar sempre se interpõe entre a orla e as ondas, da mesma forma que o pedestre é um objeto não identificado que atrapalha o livre fluxo do trânsito.
Eu relembrava essas filosofias de botequim quando o desconhecido entrou. O bar estava despudoradamente vazio àquela hora matinal mais próxima do almoço do que distanciada do café. Ainda assim, ele circunvagou o olhar à maneira de  Fernão de Magalhães, em busca de um canto onde ancorar. Lá estava uma mesa como que à espera. Abancou-se.
“Dois chopes”, encomendou.
Vieram as tulipas com as devidas borbulhas e o colarinho na espessura correta, para hidratar bem o consumidor sem tirar o gosto da bebida. O intelectual (pois só podia pertencer a essa espécie cada vez mais numerosa, mesmo sem óculos e negra barba cerrada e, sobretudo, sem livro à mostra) não tardou em recolher-se à concha de si mesmo.
O garçom era bem treinado. Com olhos dissimulados acompanhava todos os gestos do freguês, em especial o nível do líquido. Mal faltassem dois dedos, ei-lo a postos, torso inclinado, a indagar o óbvio:
“Mais um?”
“Mais dois”.
Dessa vez o garçom arqueou de leve as sobrancelhas. Era um garçom competente, de meia idade, cabelo ralo, túnica alvíssima e gravata-borboleta. E um ar de pessoa confiável, confidente. Até pouco tempo atrás um garçom que se prezasse era um amigo providencial. Se o freguês tivesse sorte, encontrava um que fazia às vezes de psicanalista: ouvia desditas, argumentava e emitia sentença. Ou pelo menos se solidarizava. Predominavam, nesse escasso exército de Brancaleone, os garçons especialistas em dramas conjugais.
Chegaram as novas tulipas porejadas de suor frio.
“Esperando alguém?”
“Não”.
“Nesse caso...”
“Já sei: os dois chopes. É que estou acompanhado por uma amiga velha de guerra”.
“Entendo”, disse o garçom.
As ondas rolavam, aos baques. Não vinham do mar, esses baques: eram os estalos das lambadas de Iemanjá nos corpos dos pecadores desejosos de purificação.
O intelectual olhava o líquido baixar nas tulipas. Afogando mágoas? Decerto, embora aquele ali desse a impressão de já tê-las submergido há muito tempo. As mágoas de uma cantora (teria sido Maysa, a triste Maysa, ou Elis Regina? Preciso certificar-me para não ofender a memória desta ou daquela) tinham aprendido a nadar, as danadas – e enfrentavam maré forte.
“Mais dois”.
“Por que não deixa o da sua amiga para logo mais? Aí na mesa esquenta rápido.”
“Ela é de conversar muito, precisa molhar a palavra”.
“Ah”.
O rumor crescia na praia: Iemanjá surrava sem piedade os banhistas, em sessões contínuas de descarrego. Devia ter o braço dormente, porque, de vez em quando batia com a cauda, às rabanadas. Mais adiante, a cem metros, um estrondo repentino: o helicóptero que fazia voos rasantes espatifou-se no mar. Felizmente todos os ocupantes salvaram-se a nado e acabaram no bar, para afogar o susto.
O sábio garçom aproximou-se outra vez.
“Mais dois?”
“Mais um”.
“Tem certeza?"
“Mais um”.
“Sua amiga aí parou tão cedo?"
“Não. Eu é que cheguei ao limite”.