TRAÍRA METIDA A ROBALO - Antônio Lopes








 TRAÍRA METIDA A ROBALO


  Antônio Lopes


José Vitorino dizia ter-se permitido “umas pescadas”, sim, porém coisa de menor importância para sua biografia, nenhuma aventura comparável a O Velho e o mar, de Hemingway. Gabava-se de ser caçador, não pescador. Mas, de tanto tangenciarmos o assunto, admitiu, em certa manhã na sua sapataria, ter alguma coisa: “Talvez, talvez. Uma historinha sem maiores atrativos, que nem dá vontade de contar, porque parece mentira, e eu – vocês estão cansados de saber – detesto mentiras...”
Conhecedores de sua técnica de negar querendo, batemos pé na insistência, sabendo que a história já se encontrava em fase final de gestação e que ele, como sempre, estava com a maior vontade de contá-la. Não deu outra:
       – Certa vez, saí daqui de casa decretado para uma pescaria de anzol nos Três [localidade distante 3 km de Buerarema], na pista de uma traíra que era a dona dum riacho lá na fazenda do pecuarista Isaque Santos. Grandalhona em feitio de robalo, arisca, desconfiada feito um índio, sabida e cheia de truques como advogado formado, jamais se deixava prender em anzol. Contavam que a danada comia a isca e ia embora rio afora, com a maior cara de pau, nadando e olhando pra trás, com ar de deboche. Houve até gente  jurando de mãos postas ter ouvido um risinho safado da bicha, enquanto ela mastigava a isca e dava braçadas rio abaixo, jura que prefiro creditar a muito sol na cabeça e imaginação desenfreada de pescador. Mais um pouco e essa gente invencioneira é capaz de dizer que a traíra exalava odor sulfuroso, como se fosse o capeta vestido de escama e guelra, o tinhoso disfarçado em peixe de água doce.
       Com este introito, o grande contador de causos já pegara os ouvintes pelo colarinho e os sentara na cadeira, imóveis, à espera do desfecho que se prenunciava com o maravilhoso de sempre.
       – Agora vejam vocês o tamanho da minha responsabilidade, o lugar onde fui amarrar minha mula estradeira, desafiando um bicho ardiloso desses. Mas se não sou especialista em pesca, sou menos especialista ainda em ficar de braços cruzados, assistindo à honra municipal despencar ladeira abaixo. Cidadão macuquense de quatro costados, do que não abro mão, sou desses que não levam desaforo para casa, muito menos desaforo proferido por uma reles traíra com mania de grandeza.
 – A gota d´água veio em forma de um cometa de remédios que me disse já ter chegado a Camacã o comentário de que Macuco não tinha homem capaz de enfrentar olho no olho uma traíra metida a gato mestre que estava fazendo de besta tudo que era pescador. Com o bofe no pé da goela, como é do estilo dos Vitorino, desisti da rede armada no oitão da casa, fechei a tenda de sapateiro, me despedi da patroa e fui pra guerra. Mas antes, conforme recomendam os manuais de combate, me preparei.
– A Casa Enigma, de Nestor Mangabeira, forneceu anzol especial, com quatro ganchos, chumbada de peso certo para atingir a profundidade requerida, linha de nylon com a resistência necessária, vara linheira e flexível; na pensão de Armando, a munição de boca do pescador, já com meu estoque de cigarro de palha, sem o que não caço nem pesco: farofa de jabá com banana-da-terra e uma garrafa de cachaça Vaidosa, pra esquentar o frio que vem do riacho de Isaque Santos.
– Chegando ao local da peleja, no pesqueiro onde a traíra cantava de galo, tomei posição de combate, joguei o anzol, piaba viva se balançando, quatro ganchos de aço na armadilha, fiquei na espera do inimigo. Não demorou muito e percebi que estava com sorte, a julgar pelo barulho de peixe grande  se aproximando, de olho guloso na isca. Era ela, em carne e osso. De cima, tomado de emoção incomum, medi a bicha da cabeça ao rabo e atestei que os pescadores não mentiam: aquilo era traíra pra homem nenhum botar defeito, capaz de tornar famoso o anzol que a segurasse.  Capturar um animal daqueles era um lance único, suficiente para fazer a fama de qualquer pescador, fama que estava ao meu alcance e de mais ninguém. Se a sorte me ajudara, as coisas agora só dependiam de mim.
– Fiquei como se nem estivesse ali, estátua de pedra, quase sem respirar, nada ouvindo, além  do chap-chap dela,  brincando em torno do anzol, o barulho dos jatiuns e os batimentos do meu coração, que parecia zabumba de Luiz Gonzaga. Mais de perto, ela olhou a piabinha trapezista, como se pesquisasse algum perigo escondido, fungou, babou, lambeu os beiços, botou a língua de fora, boca cheia d´água, mas pareceu desconfiar da esmola grande, com aquela piaba fresquinha, se oferecendo às cambalhotas como a dizer “me coma!”. Deu meia volta. Eu achei que a sorte havia me abandonado, deixando vencido pela traíra este José Vitorino que ora fala humildemente a vosmecês...
– Mas era apenas um desses caprichos que, dizem, a sorte tem. Dando a impressão de que ia mesmo  bater em retirada, para minha surpresa, ela voltou em cima do rastro, rápida feito uma cascavel zangada, deixou que o pecado da gula vencesse a virtude da prudência e, bocarra aberta, vapt!, abocanhou piaba, anzol e tudo, num piscar d´olhos, e quando viu a besteira que havia feito, e quis desistir, era tarde. Debateu-se, lutou, quis correr rio afora, mas já estava sob os rigores da munheca de José Vitorino, o que é fatal para boi de arrasto, imagine para uma traíra, por maior e mais soberba que ela que ela seja.
– Dei-lhe uns metros de linha, depois puxei, soltei outra vez, puxei de novo, ficamos nesse puxa e estica das dez horas da manhã às quatro da tarde, sem que ela desse sinais de cansaço. Quem se cansou fui eu, que tinha mais o que fazer do que ficar brincando de esconde-esconde numa beira de rio: firmei essas duas munhecas da marca Vitorino e levantei linha, anzol, traíra e tudo por cima da cabeça, mas com  força tão descalibrada que me aconteceu a coisa mais incrível de quantas já me aconteceram: a traíra sumiu no ar às minhas costas, tendo finalmente escapado do anzol, fora da água!  Maldizendo a mim mesmo por ser assim exagerado de força, vasculhei a área o mais que pude, sem encontrar traíra ou explicação. Tirei o corneta da cintura e rocei quase um hectare de mata no entorno do riacho, mas da traíra nem notícia. Parecia ter criado asas e partido infinito adentro! Com a noite batendo na porta, resolvi ir embora, mais do que cansado, frustrado com o enigma não resolvido.
– Ao chegar em casa, fatigado do trabalho e desapontado com o resultado, ouvi da mulher história mais espantosa do que a minha: “Hoje à tardinha, entrou uma traíra enorme pela janela, caiu na gamela da cozinha e eu, pensando que era alguma surpresa sua, já preparei parte dela para o jantar. O que sobrou, coisa de quatro quilos, noves fora rabo e  cabeça, que só essa dá, no barato, um quilo e meio, eu botei no sal preso e tranquei no guarda-comida”.
  – Ora, vejam só! Depois de segurar o queixo, que tinha ido parar na caixa dos peitos, tomei a decisão de abandonar a pescaria de uma vez por todas, traumatizado por quase haver cometido um desatino, movido pela irritação. Já pensaram se aquela traíra já imensa, e com o peso multiplicado por três quilômetros de espaço, em vez de cair na gamela de minha cozinha caísse em cima de uma criança em Macuco? Só em pensar nisso eu me felicito por ter aposentado o anzol... 
 – Informo a quem interessar possa que a traíra valentona recebeu todas as honras fúnebres, incluindo azeite de dendê, leite de coco e pimenta de cheiro, sendo acompanhada de pirão de farinha do Serrado, molho de pimenta malagueta verde e, para abrir os trabalhos, uma talagada de cachaça Vaidosa. Mas confesso a vosmecês que, enquanto passava nas armas a mais famosa traíra da história de Buerarema, ex-Macuco, não pude deixar de murmurar, por entre vigorosas dentadas, já não sei se por vingança de inimigo ou satisfação de esportista vitorioso, com uma pontinha de vaidade:
          – Conheceu, papuda?

                                                                                                                                                                                                                                              (Lopes, Antônio. Luz sobre a memória. Itabuna:
Agora Editoria Grtáfica Ltda., 2001)