O BUGRE - Hélio Pólvora






O bugre

Hélio Pólvora

Conheci alguns índios de ficção. O primeiro, na juventude, foi Peri, do romancista José de Alencar. Ainda hoje, no meu imaginário, ele desliza em canoa, com a sua adorada Ceci, na enchente do rio. Tenho certeza que jamais naufragaram, porque eram amantes românticos, amantes eternos.
A seguir, veio o índio guerreiro, forte e destemido, do poeta Gonçalves Dias. Aquele que dizia que “viver é lutar”, que “a vida é um combate que aos fracos abate” etc.
Senhores da floresta, da terra brasiliense antes da chegada de Cabral, esses índios andavam seminus, caçavam e pescavam, enfrentavam feras e muitos morreram arcabuzados pelos portugueses, como aconteceu a uma tribo de aimorés, em Cururupe, entre Ilhéus e Olivença, na Batalha dos Nadadores.
Na criação desse índio brasileiro mais ou menos utópico, Alencar imitou modelo estrangeiro. Estava em moda o moicano de Fenimore Cooper. Nenhum sociólogo levantara ainda objeções à teoria do “bon sauvage” de  Chateaubriand, o autor de Atala.
Romantismos à parte, o cerro é que o ficcionista cearense lançou com a sua temática indigenista os alicerces de uma literatura brasileira na sua tipicidade. Infelizmente a sintaxe lusitana desfigurou em parte o intento.
Eu teria de me fazer adulto para reencontrar esse índio, já não mais estilizado, nas ficções sul baianas de Adonias Filho. Em especial, no romance As Velhas. Um índio mais escravo do que senhor, aviltado por uma civilização que o despoja de sua identidade e cultura para melhor subjugá-lo.
No entanto, um índio estoico, resistente. A mata, hoje devastada, ensinava-o a sobreviver. Os estudiosos que se debruçam sobre as fontes da formação étnica e social grapiúna deveriam dar maior ênfase à densidade do sangue índio e negro nas nossas veias.
O caldeamento cultural grapiúna não os dispensa. Para o cultivo do cacau, no seu ápice econômico, vieram negros do Recôncavo, tangidos pelo declínio do agronegócio canavieiro e fumageiro. Vieram sergipanos muito pobres, de origem mestiça. Foram os braços das nossas lavouras e conviria, a bem da verdade e na contramão dos preconceitos, cultuar a memória desses sacrificados heróis anônimos.
Quem perde a identidade, pressionado por forças sociais avassaladoras, tende a se desesperar. O Brasil que se cuide: tem as suas etnias marginalizadas e se nega, ou então tarda a ouvir advertências da História.
Na condição de contador de histórias, que outra não quero ter, vou narrar-lhes a breve convivência com um desses índios exilado no seu próprio paraíso.
Chegou de manso. Baixo, atarracado, um feixe de músculos. Estendeu as mãos, palmas para cima
Sou bom de enxada, vosmecê vai ver.
Mãos grandes, um calo só. Meu avô resolveu experimentar o bugre, como passaria a chamá-lo. E do mesmo modo como tinha chegado, com a roupa do corpo, apenas arregaçando as pernas da calça até o joelho, o bugre entrou no eito e empunhou a enxada. Logo se viu que a enxada lhe era familiar, o cabo corria ligeiro em suas mãos, como pena amestrada de doutor, a lâmina cantava igual ao teclado de piano ferido pelos dedinhos mimosos de donzela prendada.
Só levantava a vista para franzir as narinas e cheirar jaca madura. Tinha fome, talvez uma fome de dias. “É, não trouxe merenda”, comentou um trabalhador.
Em pé, o bugre parecia um toco chamuscado em queimada. Grosso, desses que espalham raízes fundas na terra. E sempre fechado, encalacrado, lá em conversas consigo mesmo ou com o morubixaba de sua tribo perdida. No seu rosto não perpassava sequer a nuvem esfiapada de um pensamento. Até que veio o sábado, com o pagamento da semana — e ele, com a mesma calça e camisa, a mesma cara enfezada, aquele tique de repuxar o bigode ralo prum lado, sumiu-se com os companheiros de turma pra fazer o saco em Rua-de-Palha.
Voltaram no lusco-fusco, como sempre acontecia. E às quedas, como de hábito. O bugre, camisa aberta no peito, pés que eram marretas engessadas pela lama dos caminhos, mas de olhos buliçosos e chamejantes, em vez de entrar na sua casa-de-palha veio nos procurar.
Eu estava sentado no alpendre, ele se chegou e tomou assento no chão, as costas apoiadas na parede. Seus olhos me procuraram. Estavam afetuosos, úmidos, eram brasas esmaecidas que, no entanto, alumiavam bem. O rosto sorria.
— Senhor bom, me deu trabalho — disse o bugre.
Balancei a cabeça, em assentimento.
— Eu tinha fome, três dias comendo besteiras nas estradas — disse o bugre.
— Ah, lá isso nós imaginamos.
— Senhor não imaginar tudo — disse o bugre.
Fez uma pausa, estirou as mãos enormes.
— Senhor não poder imaginar tudo — disse com uma raiva súbita.
Me sobressaltei. Eu ali, na escuridão que caía sobre a pastagem, sozinho com o bugre.
— Apanhei muito — disse o bugre.
A voz me tocou pela brandura e por uma nota dorida, aguda, próxima do choro.
— Hoje?
— Hoje não. Antes.
E fez um gesto com os braços, abarcando o mundo, o tempo.
—O cabo de polícia me pegou. Me disse que era pra eu estender as mãos, abrir bem as palmas. Assim.
O bugre estirou as mãos, palmas para cima — aquelas mãos calosas, firmes, de enxadeiro.
— Disse que era pra eu abrir bem, senão a palmatória me quebrava os dedos. Eu abri logo, eu proteger meus dedos.
— Quando foi o sucedido? Quem era o cabo?
Enrolou uma lengalenga que não decifrei direito, cheia de repetições, de peripécias que se contradiziam. De repente, parou de falar, ressonou. Parecia um toco, um tronco, um toro tisnado ali largado na varanda que semelhava uma barcaça e esta vogava na maré do anoitecer. Que durma. Que cure a carraspana, disse meu avô.
Os dias se repetiam, trabalho e somente trabalho, de noite o negrume cercando as casas, uma solidão espessa. Nos domingos descia sobre os campos a mortalha da mais pesarosa tristeza que já conheci. Tudo estagnado, com jeito de lodaçal, tudo baço. Calado, enfiado nos seus adentros, o bugre repuxava num tique nervoso o bigode ralo. Tinha os olhos apertados, trevosos. Nas horas de folga, sentado na pedra lisa que servia de degrau na porta de sua casa-de-palha, furava o solo com a ponta do facão.
Mas os sábados e domingos eram gastos, quase todas as horas, menos as de dormir, na feira de Rua-de-Palha. Trazia sempre um litro de aguardente no embornal. Loquaz, quando bêbado e bebido, tropeçava nas palavras, repetia, dizia e desdizia, jurava e esconjurava. As mãos, aquelas mãos que acariciavam o cabo da enxada, tinham inchado, ele precisou aplicar salmoura.
— Vinte bolos, senhor. Vinte bolos com toda a força do braço do cabo de polícia.
—Mas por quê? Qual foi a sua arruaça?
O bugre ignorou a pergunta.
— Quarenta bolos, um atrás do outro, eu ia contando e gemendo. E teve um momento que não aguentei, o mijo escorreu quente pelas pernas, dentro da calça.
As lágrimas que lhe enevoavam os olhos correram pela cara achatada. Desciam lentas, como envergonhadas de rolar em cara de bugre macho que tinha enfrentado onças. Uma lágrima parou no canto da boca, formou  uma gota cristalina.
— O cabo batia — chorou o bugre. — Uma dúzia de bolos de arrebentar as mãos. Esta aqui que o senhor está apertando agora.
E me forçava a um aperto de mão esmagador. Noite escura, de raras estrelas; no céu, brandiam a foice da lua nova. Os soluços do bugre quebravam o silêncio como pedras atiradas em poço fundo.
 O nome desse índio eu não sei. Talvez fosse um ascendente de Galdino Jesus dos Santos, aquele líder pataxó que incendiaram em Brasília (20 de abril de 1997), a quem dediquei um livro de crônicas. O índio perdeu a identidade na aguardente dos brancos, nas doenças recebidas, nas matas derrubadas, no trabalho semiescravo em troca de um prato de feijão com tripas.
Peri teve mais sorte. Continua a remar no rumo do horizonte inundado e contempla Ceci com a devoção devida à Rainha do Céu. O imaginário perfuma à força feridas incuráveis.



*Hélio Pólvora, escritor várias vezes premiado, é jornalista, editor, cronista, crítico de cinema e literatura e tradutor de centenas de contos, romances e ensaios.