UM SATÍRICO DE ILHÉUS - Hélio Pólvora




Um satírico de Ilhéus
*Hélio Pólvora 

 Sei que é Natal, mas não me sinto habilitado à crônica natalina. É que mudaram os dois – o Natal e eu. Sobre o que escrever, então, sem repetir os  chavões de boas festas, harmonia e prosperidade? Eça (o de Queiroz, romancista português), quando não tinha assunto, vergastava o bei de Túnis. Feiizmente os temas, nesse vespeiro que é o Brasil atual, enxameiam de forma ensurdecedora. Há o metrô de Salvador, por exemplo. Será inaugurado algum dia? Talvez seja a obra-prima do ficcionismo baiano, o romance ou o  conto de beleza suprema, ainda inconcluso.
Por associação de ideias, chego à ponte Salvador-Itaparica. Fui dos primeiros a opinar contra o projeto, sob alegação, simples e calcada no mais rudimentar bom senso, de que a Bahia tem necessidades muito mais urgentes. Mas há um exército de propugnadores da ponte – e ele não representa as “forças ocultas” do trânsfuga Jânio Quadros.  São forças claras, juízes da oportunidade, com a vantagem de ter a caneta e o talão de cheques à mão.
Vem à memória, a seguir, por obra de pensamentos que marcham unidos, a ponte entre Pontal e Ilhéus, entre o continente e a ilha, ali no sul baiano. Os chineses a teriam  feito  em poucos meses, e a custo duzentas vezes menor.  Levou anos em discussão, exigiu campanhas políticas, técnicas de guerrilha parlamentar. Quase esgotou o fôlego de Demosthenes Berbert de Castro, o Demostinho, orador inflamado.  E isso numa época em que o cacau pesava nos orçamentos públicos, tinha poder de barganha. Um dia, transcorridos anos, a ponte foi inaugurada. Hoje está congestionada, em especial nos finais de semana, quando se transforma em nó górdio. Os ilheenses pedem outra. Ainda não foram ouvidos pelas autoridades estaduais e federais. E lhes falta a combatividade verbal de Demostinho, que o tempo e o vento levaram.
Um poeta satírico de Ilhéus, Alberto Weyll Hoisel, que conheci através do livro Solo de Trombone, de Antônio Lopes, seu exegeta e compilador, escarneceu da longa gestação daquela ponte. Assim:

De moda sai o colete
em tempo que longe vai.
Sai Getúlio do Catete,
só essa ponte não  sai!

E seguiam-se outras quadras e rimas, com o mesmo travo irônico, escarninho, próprio da língua ferina de poetas defensores, pelo riso, das nobres causas públicas.
Afortunados os que sabem rir e transmitem o riso. Ao receber o biógrafo Antônio Lopes na Academia de Letras de Ilhéus, a 28 de maio de 2001, lembro-me de haver dito que há muitas maneiras de rir. Os franceses usam a expressão rire aux anjes, que significa rir distraidamente, sem motivo. Nós, brasileiros, temos todos os motivos para rir. Rindo, porque não adianta mesmo manifestar a nossa ira, parecemos mais felizes, perdemos um pouco daquele medo do que o PT prepara para este País. Convém apelar para a vingança do riso escarninho. Esta lição é de um francês, La Bruyère.
  A verve de Alberto Hoisel, na arte do epigrama afiado, nos faz lembrar a de Sylvio Valente, o Pepino Longo, e de Aloísio de Carvalho Filho, o Lulu Parola, cronista do Jornal de Notícias e da Rádio Sociedade da Bahia, e também de A Tarde, onde ingressou em 1925. Aproxima-se igualmente  de outros poetas satíricos baianos catalogados e antologiados, se me permitem o neologismo, por Wilson Lins. Entre esses humoristas que perdiam um amigo para não perder uma piada, quero incluir o itabunense Gil Nunesmaia, também autor de haicais comparáveis aos de Oldegar Vieira.
O livro de Lopes sobre Hoisel recupera a sua vida, as suas façanhas literárias. É um modelo de biografia, um modelo de pesquisa. Traz uma iconografia importante para Ilhéus e a Região. É um atestado de como resgatar a memória de alguém, a memória de uma cidade, a memória, enfim, de uma geração. E tem a vantagem de acessar, em grande parte, a obra satírica de Hoisel, que cutucou muita gente boa em Ilhéus. Certamente não darei nome às vítimas. Mas vou citar um exemplo menos perigoso, a propósito das peripécias de Jânio Quadros com a UDN, em 1961:

A UDN está vendo
o erro que foi cometido:
antes, um doido varrido,
agora um doido varrendo.

E também este, quando Jânio Quadros, então presidente,  quis estabelecer relações diplomáticas e comerciais com a China:

Até o Jânio sustenta
esta infalível doutrina:
neste país se aguenta
quem faz negócios da China.




*Hélio Pólvora, escritor várias vezes premiado, é jornalista, editor, cronista, crítico de cinema e literatura e tradutor de centenas de contos, romances e ensaios.