CARTA DE AGRADECIMENTO - RUY PÓVOAS







Itabuna, 30 de maio de 2013.           


Caríssimos Amigos,
            Caríssimas Amigas:


            Já começam a assentar os efeitos dos vagalhões de sentimento e emoção resultantes do “aniversário de faraó”. Aí, sou dominado por uma vontade, um desejo e uma necessidade de me dirigir a vocês. A princípio, pensei em escrever uma mensagem a cada pessoa que me mandou e-mail; ou me enviou carta ou cartão; ou se fez presente à festa; ou me presenteou, fosse com flores, toalhas, objetos domésticos, roupas, perfumes, cremes, sabões dos mais diversos tipos, livros (alguns caríssimos), impressora, meia, desodorizantes, loções dos mais diversos tipos e finalidades... Deram-me até uma sandália feminina n.° 37 (e olhem que eu calço 40) e uma camisa “P”. Sobre tudo isso, eu me debrucei (e ainda continuo me debruçando), com o nome de vocês etiquetado em cada um dos presentes. Ah, sim: houve quem se preocupasse em escrever sobre tudo isso, a exemplo de Valério Magalhães, Vera Rabelo, Josevandro Nascimento, ALITA (compreenda-se Ceres e Sônia Maron).
            Wanda Magalhães me telefonou, mas não conseguiu falar uma palavra sequer, embargada pela emoção. Chorou, chorou, chorou. Só conseguiu dizer: “Depois eu ligo pra você de novo.” No seu choro, um conteúdo que daria páginas e páginas. É assim mesmo: quando o sentimento se expressa, suas mensagens são pronunciadas em lágrimas, risos, gestos, olhares, suspiros, silêncios...
            Depois de ficar sentindo tudo isso por dias e dias, concluí que melhor seria me dirigir a vocês coletivamente. Até porque, aos 70, já não há mais tanto tempo assim. Seria escrever mensagens para o resto da vida que me resta. Mesmo, correria o risco de dizer coisas a um que deixassem o outro com ciúmes. E como eu tenho amigos e amigas ciumentos! É por isso que eu gosto deles e delas...
            Aconteceram coisas que, impregnadas em minh’alma, ficarão para sempre, promovendo e provocando arrebatamentos, como se ainda estivessem acontecendo: a visita de Janete Macedo; Raildes toda de branco; a sacola de presentes de Niraldo; a fala de Marialda; a emoção de Margarida Fahel; a visita de quem veio de longe (tendo despesas vultosas com passagem e hospedagem, a exemplo de Morais, Theo, Sérgio Gantois, Paulo Galdino, Daniela Galdino, Margaridinha, Samuel). Ao lado disso, como esquecer Maria da Paz Jambeiro, Adílson, Kokó Lordão, Cibele e Banda Manzuá cantando exclusivamente para mim?
            E os telefonemas que não atendi, porque estava esquecido em outra casa? Um vexame... E os e-mails que só pude ler depois de dias? Arriscado o povo pensar que estava metido a besta...
            Há como agradecer o que os omorixás do Ijexá fizeram? O cardápio, as flores, os pratos (aliás, todos os utensílios), a ornamentação, tudo, enfim. Mas quem gaba o toco é a coruja... Basta que diga a vocês que recebi mensagem dos Estados Unidos de gente querendo saber sobre aquelas xícaras em que foram servidos o chá e o cafezinho. E se eu cito tais detalhes é porque quero que fiquem sempre patentes o meu eterno reconhecimento e o penhor de minha gratidão a quem tão amorosamente preparou tudo aquilo. Não sei dizer (ainda) outra coisa.
            Ah, a carta de Rosalina, vinda da cidade João Dourado. Ah, Rosalina! Foi buscar em Saramago a motivação para me parabenizar. Sabem o que ela fez? Falou da morte ao longo da carta, para no final explodir em vida, contentamento e alegria. Só ela mesma, capaz de tais malabarismos semânticos.
            Não há como esquecer frases do tipo: “Você fez aniversário, mas fomos nós, os seus amigos e amigas, que fomos presenteados com aqueles momentos inesquecíveis.” E tais palavras foram acompanhadas por um moleton belíssimo (branco, é claro).
Mas sabem por que os momentos foram (ou ainda são) inesquecíveis? Porque vocês estavam lá. Tudo aquilo estaria reduzido à decepção, se vocês não tivessem participado. Eis a prova de que vocês fizeram tudo aquilo acontecer. A festa, na verdade, foi para vocês, a quem devo a felicidade de existirem no meu tempo. Imaginem eu nascido há 200 anos. Certamente teria o mar de cristal líquido do Pontal; as águas cristalinas do Rio Cachoeira; as árvores seculares da Mata Atlântica; a amplidão do espaço aberto do caldeirão onde hoje se localiza Itabuna... Mas faltariam vocês. Seria, portanto, um aniversário de 70 anos choco, vazio, ignorado, murcho, insosso, insípido, inodoro.
            Ah, sabem o que Lourdinha Brandão fez comigo? Mandou-me cópia da carta de Tereza Ribeiro, datada de 15/02/1971, me apresentando à Lindaura Brandão, para substituí-la no Colégio Divina Providência. Quase morro... Iramir Marques para além de dois livros, me mandou um cartão que tem o número 70 em tinta dourada, enorme. Osmundinho Teixeira me trouxe um livro raro numa encadernação luxuosíssima. E Dona Edna Teixeira, a mãe dele? Se vestiu em elegância e finura para me homenagear. Era a própria imagem arquetípica, em fino acabamento, da Grande Mãe. Ô, gente! Sabe Deus como tudo isso me estremeceu.
            A homenagem da ALITA... aquele violino fazendo dueto com os atabaques... Os dois componentes de minh’alma: o europeu e o africano, tão bem harmonizados hoje, em mim. Coisas de Ceres que contou a Jorge. É ela, a inventora de tudo isso... E as palavras de André Rosa em nome da Academia de Letras de Ilhéus. E a presença de James Ribeiro e Vane, prefeitos de Ilhéus e Itabuna. Do professor José Luiz de França, representando o Kàwé. De Mãe Ilza Mukalê com suas ekédis e ogãs, do Terreiro Matamba Tombeci, de Ilhéus. E Tia Creusa com seu filho Luciano, meus parentes Póvoas.
            Ah, sim: sei que corro o risco de omitir lembranças, mas é isso mesmo: aos 70, um punhado de neurônios já se foi para sempre... Vocês saberão perdoar. Mas há coisas que os neurônios sobreviventes, num rasgo de hipnose, absorveram indelevelmente. Eis um exemplo: “Sua trajetória de vida realizadora de cuidados e talentos em variedade de tarefas justifica o sentido de sua festa.” É por essas e outras que eu costumo dizer sempre: Vocês são naves de Deus na existência. Sabem de quem é a frase? De Helena dos Anjos, num primoroso cartão. Ah, Helena, esparrame de bondade. Mas é isso, Helena: nos dizeres de Pirandello, “assim é, se lhe parece”; nos dizeres do povo do terreiro, “a luz assume a cor do vidro que atravessa”.
            Houve de tudo no aniversário. Entre tantas passagens inesquecíveis, houve uma protagonizada pela Senhora de Todas as Tribos, Sônia Maron. De repente, ela me segredou ao ouvido: “Rui, daqui a pouco, você vai ter que subir naquele tablado e dar bênção Urbi et Orbi.” Desnecessário dizer da gargalhada que eu dei. Outra passagem impagável: Janilê, aos 93 anos, lépida e desempenada, dançado com os mais moços ao som de Kokó Lordão (Janilê é aquela senhora que dá o último depoimento em meu livro A memória do feminino no candomblé).
            E para que melhor vocês recepcionem o meu mais profundo agradecimento, anexo a esses meus dizeres uma cópia de minha fala pronunciada no Colóquio Kàwé, no dia 9, e repetida no evento Um canto à ancestralidade, no Axé Ilê Ijexá, no dia 19.
            No mais, de tudo farei para continuar merecendo a amizade de vocês, pois conforme afirma Jorge Amado, “a amizade é o sal da vida”.
            Um abraço de axé.

                                        Ruy