Nasci em Itabuna. Lá, naquela cidade da outrora rica região cacaueira baiana, tive uma infância diferente de hoje na qual os jogos eletrônicos transmitem o prazer ausente de sentidos e valores na aventura da vida. Foi lá, naquela cidade com trinta mil habitantes, que tive a primeira escola, a primeira comunhão, a primeira namorada, o primeiro Carnaval, a primeira gravata, o primeiro banho de rio, o primeiro São João. Joguei a primeira partida de futebol com os queridos amigos de infância.
Fiz o curso primário em minha cidade natal. Cursei dois anos no Ginásio Divina Providência. Minhas primeiras leituras foram em revistas de quadrinhos, os meninos de meu tempo chamavam de gibi e guri. Nem sabia que com meus heróis inesquecíveis, Mandrake, Homem-Morcego, Tarzan, Capitão Marvel, Super-Homem,Tocha Humana, O Fantasma, Flash Gordon, Roy Rogers, Príncipe Submarino e outros – estava entrando na morada dos sonhos para nunca mais sair. No único ginásio da cidade conheci trechos das obras de Camões, Bilac, Eça de Queiroz, Machado de Assis e Ruy Barbosa. Tive os primeiros contatos com os clássicos de nossa língua, através do sujeito, predicado, objeto, adjunto adverbial e outros elementos gramaticais de análise lógica. Os primeiros livros que eu li foram da coleção O tesouro da juventude, de Júlio Verne, os de Edgard Allan Poe, Charles Dickens e Monteiro Lobato. Seu Zeca Freire, o dono da farmácia, emprestava-me os livros desses autores e incentivava para que eu não deixasse de ler outros, também importantes, como Machado de Assis e José de Alencar.
O menino do interior foi para Salvador, como o pai queria, para se tornar advogado. Na Capital concluí o curso ginasial no Colégio Nossa Senhora da Vitória, dos Irmãos Maristas, onde descobri histórias de Machado de Assis, crônicas de Humberto de Campos, romances de José de Alencar e poemas de Castro Alves, na pequena biblioteca do grêmio estudantil. Fiz o curso clássico no Colégio Estadual da Bahia (Central). Meu professor de português, Antônio Barros, indicou-me uma lista do que julgava serem os cem melhores livros da literatura brasileira. Fui devorando-os na biblioteca durante os anos de estudante naquele colégio.
Publiquei o conto “A Corrida” quando cursava a Faculdade de Direito, em 1959, no suplemento literário do Jornal da Bahia, dirigido por meu amigo e colega João Ubaldo Ribeiro. De leitor passava pela primeira vez para autor de uma história. A sensação dessa passagem foi de pura alegria. Não parei mais de andar nesse caminho de dar palavra ao sonho. Depois de escrever alguns volumes de contos e novelas migrei para a poesia. De repente surgiu de dentro de mim aquele menino, pedindo que escrevesse também para crianças. Obedeci e tenho prazer quando brinco com as palavras e as crianças. Quero que esse menino nunca mais se afaste de meu pequeno coração, que um dia foi trancado na alma com pedaços de infância pelo mundo dos homens, e assim teve o gosto de uma fruta que acaba. Fiz até um poema em que falo disso, está no meu livro “O Marujinho Poeta”, ainda inédito. Eis o poema:
A Estrelinha
Achei uma estrelinha
Que caiu no mar
E veio dar na praia.
Perguntei pra ela:
- O que vale mais,
Brilhar no céu
Ou no vaivém das ondas?
Ela então respondeu:
- O mundo me encanta
Quando brilho lá dentro
E nunca se apaga
Seu coração de criança.
Hoje sou autor de uma dezena de livros, volumes de contos, crônicas, poemas e literatura infanto-juvenil, além de ser organizador de antologia. Tenho livro publicado também em Portugal, Itália, França e Alemanha. Alguns prêmios de expressão, como o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, o Nacional Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio), o da Associação Paulista de Críticos de Artes, o Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Genova, Itália, duas vezes, e fui finalista do Jabuti três vezes.
Nessa estrada de solidão e solidariedade, a essa altura comprida, venho sempre me perguntando o que é literatura. Para que servem os livros? Muitas vezes já me fiz essas perguntas. Literatura é forma de conhecimento dos seres e coisas, da vida e do mundo, através dos sinais visíveis da escrita. É fundamental como o amanhecer. É linguagem representativa, condensada, de ricos significados. A literatura usa metáforas para provocar reações emotivas no receptor. Exemplo de texto não literário: O sol amanheceu quente neste verão. Vejamos o do texto literário: O bem-te-vi, batendo as asas, canta radiante para o sol: Bem-te-vi! Bem-te-vi!
A literatura oral ou escrita acompanha os seres humanos para devolver a eles o que é próprio deles, ideais, razões, sentimentos, desejos, vontades, imaginações, fantasias. Dar ao homem a possibilidade mais ampla de conhecer a si mesmo, os outros mais o mundo. Com a literatura fico sabendo que estou inserido na natureza em contínua transformação. Sou um animal social compromissado com a história.
Sinto que sou uma pessoa quando começo a ler um livro, outra quando termino a leitura. Com o livro, esse bom amigo que gosta de morar na estante, passo a conhecer tantos casos, tantas coisas. Viajo por terras tão distantes, falo com gentes diferentes, de todas as cores, alegres e tristes, ricas e pobres. A literatura pode ser concebida como adulta e não adulta. A literatura não-adulta indica tanto os livros infantis, destinados a pré-leitores, leitores iniciantes e leitores em processo, como os infanto-juvenis, para os leitores fluentes e os juvenis, para leitores críticos. Na generalidade do conceito, a literatura não-adulta destina-se à criança, “o pequeno leitor, o ser em formação ou em processo de aprendizagem da vida e da cultura, para quem tal literatura é criada ou produzida”, como ensina no livro Literatura Infantil a escritora Nelly Novaes Coelho, Doutora em Letras, Professora Emérita da USP.
Os críticos costumam dizer que dificilmente o termo literatura poderá ser definido com exatidão devido à complexidade de sua natureza, que expressa uma determinada experiência humana, através de linguagem específica. Mas não é preciso ser crítico para saber que cada época produziu e compreendeu a literatura ao seu modo Fez emergir do seu contexto histórias e poemas para representar os seres e as coisas. A literatura é fenômeno da criatividade humana, é arte, a vida e o sonho entrelaçados na linguagem específica. E a literatura infantil é literatura porque funde os sonhos e a vida circunstanciada, a fantasia e o real, os ideais, ternuras, sentimento e sua possível ou não realização.
Há um equívoco quando se concebe a criança como uma criatura minúscula do homem e que por isso mesmo a literatura que a expressa é inferior. Livro bom é o rico de conteúdo inaugurando novos sentidos da vida. A literatura infantil possui seu tempo e espaço, sua gradação que corresponde a um estágio da nossa evolução biopsíquica. Destina-se ao leitor em desenvolvimento. Para que o convívio desse leitor e o livro resulte eficiente, nessa aventura harmoniosa do espírito, é necessária a intervenção do adulto. O auxílio dos pais em família, do professor na sala de aula, desses agentes do amor, que nesse diálogo leitor/livro devem estimular as potencialidades da mente em formação, com vistas à sua progressão na existência.
Ao contrário do que existia antes, em que o ensino na escola era rígido, alimentado em bases dogmáticas, a intervenção agora do professor é de contribuir para a humanização do mundo de hoje, manipular o saber que leve a descobertas e redescobertas dos caminhos a serem trilhados pelas novas gerações. O educador deve estar antenado com os meios adequados e modernos de estimular esse leitor/criança, através de jogos, contação de histórias, brincadeiras com a palavra e a imagem, teatrinhos, tudo que sirva para engajar a mente em formação em uma experiência rica de vida. Contribua para estimular a inteligência em desenvolvimento para que nela entrem e latejem sustos esplêndidos, surpresas admiráveis, ternuras e emoções.
Na globalização do mundo, de assustador aumento de populações e crescente consumismo, nessa embriaguês constante do embalo motivado pelas coisas materiais, nesta era da informática, na sociedade da imagem e som, o elétrico no ar galopando milhares ao largo, sob o furor selvagem das manadas, nesses tempos saturados de informações, tratamento computadorizado, velocidade, encurtamento das distâncias, em que se lida mais com signos, sabores desenfreados do corpo e mente, desviados dos valores e verdades humanas, gerando o vazio, a ausência de sentidos da vida, é ao livro, à palavra escrita metaforizada que devemos atribuir a maior responsabilidade na formação da consciência do mundo das crianças e dos jovens.
Educar é ato de amor, alimenta a recepção verdejante dos sentimentos e ideias. Maneira de se doar para as descobertas e revelações da alma invisível das coisas, da história, da vida com suas propostas e desafios. Com suas fluências e confluências, entre suave e alegre, sacrifício e persistência, é maneira de participar de seu tempo em forma de entendimento, auxílio e carícia. Nenhuma forma de ler o mundo é tão abrangente e rico quanto a que a literatura propõe em seu prodígio de dialogar com seres e coisas. Õ exercício de novas estratégias, em salas de aula e bibliotecas, que são espaços privilegiados para a circulação da leitura, é fundamental para auxiliar essa criança desenvolver sua mente. É, assim, de grande importância o estímulo para o fluxo dessa energia mágica que só a palavra produz, inventa, simboliza e perdura. E nos conduz para uma humanidade tantas vezes desumanizada ontem e hoje.
Contente, agradeço aos diretores da Escola Pingo de Gente, na pessoa de Luan Felizardo, coordenador do evento, e aos produtores do Projeto Caravana de Escritores, da Fundação da Biblioteca Nacional, na pessoa da professora e escritora Suzana Vargas, pelo convite para participar nesta Feira do Livro, ao lado dos autores de livros infanto-juvenis Ulisses Tavares e Kalunga.
Chego ao fim de minhas anotações com estes versos de meu livro “A Poesia de Calça Curta”:
A Poesia de Calça Curta
Acende a lanterna no porão,
Vai à caça de fantasma.
Suja a toalha de mesa
Enquanto limpa a cara.
No vaivém do balanço
Ri do vento quando sopra.
Aparece de espingarda
Pra atirar no bicho onça.
Sobe no muro do quintal,
Dá um salto para a rua.
Tropeça no galho seco,
Cai e não levanta.
Com essa não contava,
De perna engessada na cama.
• Palestra proferida na Feira do Livro de Itapé, Sul da Bahia, 21 de abril de 2013.