NO TEMPO EM QUE AS COBRAS FUMAVAM - Antônio Lopes





NO TEMPO EM QUE AS COBRAS FUMAVAM

Antônio Lopes

No passado, antes da globalização chegar a Buerarema, as moças tinham “prendas domésticas”, e tais prendas eram, diga-se logo, mais para negócios de mesa e máquina de costura do que para sem-vergonhices de cama e portão escuro, taí dona Tapuia, que não me deixa mentir.
Por isso, o problema do casamento de Berto e Lúcia. Ele, escolado em safadezas de variados calibres, das insinuações com a namorada às vias de fato nas casas suspeitas do Ponto Certo; ela, recolhida na fazenda, distanciada das maluquices do mundo, pouco sabia da vida e menos ainda do que a aguardava. E o que aguardava não era pouco. Foi-lhe apresentado por volta das nove e meia da noite do casório, após dispensados os convivas e chegado o momento do “enfim sós”, o vamos ver, a hora da da onça beber água ou da cobra fumar, pois esta estória é do tempo em que as cobras fumavam.
Lúcia, no quarto, vestindo um quase-nada de roupa, trêmula e pálida de espanto frente à expectativa da, conforme o texto bíblico, posse, espera o consorte, que já sai do banheiro preparado para cumprir suas obrigações maritais. Digamos, sem especificar detalhes, que Berto, cidadão bueraremense de estirpe exemplar, estava entusiasmado com sua responsabilidade, mas de tal entusiasmo não participava Lúcia.  Ao contrário: ao ver as dimensões do, digamos assim, instrumento da consumação (pois Berto saía do banheiro armado com o apetrecho necessário e mais do que suficiente para seu desiderato), foi assolada por pavor tamanho que saltou da cama, desembestou pela rua abaixo e correu um quarteirão inteiro, indo bater às portas da Vila Renilde, morada do vereador Gumercindo Sá, seu padrinho de casamento.
Espanto maior do que Lúcia teve seu Gumercindo, ao dar de cara com a moça esbaforida e em camisola de dormir. E o espanto avolumou-se ao identificar na estranha visita a sua recentíssima afilhada, não sabendo que surpresa maior o aguardava: antes que a criaturinha tivesse tempo de dizer “Pindamonhangaba”, bateu-lhe à mesma porta um encabulado Berto, em ceroulas e tamancos (obra da Tamancaria de seu Cordolino Magalhães, orgulho da cidade). Ele partira em disparada atrás de sua presa, isto é, de sua esposa, tão logo conseguiu ocultar a coisa que causara tal assombro à pobre moça. Por medida de segurança, ele foi colocado no quarto dos fundos. Lúcia, depois de uns três copos d´água com açúcar, diligentemente providenciados por dona Zizinha (mulher do vereador e madrinha do casamento), tartamudeou as razões do seu tresloucado gesto. E de uma coisa deu ciência aos padrinhos, tão logo normalizou a respiração: queria desistir do casamento e voltar às suas atividades de roceira no sururu, pois, apesar da falta de política agrícola, preços baixos do cacau, podridão parda e outras doenças que atacam plantas, flores e frutos, a profissão de esposa lhe parecia mais perigosa do que a de agricultora. “Casamento, nunca mais, meu padrinho!”– dizia entre soluços e lágrimas.
Em meio a tal confusão, seu Gumercindo tratava de manter a serenidade e, de olho no significado político que o episódio poderia ter, preocupava-se. E desse preocupar-se nasceu a ideia de promover uma espécie de Conselho Interdisciplinar, reunindo as forças políticas (representadas por ele mesmo), populares (dona Zizinha, sua mulher) e religiosas (nas lideranças das igrejas Católica e Batista). Estribado nesse raciocínio, enviou portadores à casa do padre Granja e do pastor Freitas, pedindo-lhes presença urgente, pois a situação era de vida ou morte, escândalo irremediável ou iminente derramamento de sangue, o que quase gera outro grave problema: Dulce, a “governanta” do padre, não muito boa da cabeça, entendeu o recado pelo avesso e deu ao pároco a ideia de que na casa do vereador alguém estava no aguardo da extrema-unção. Para lá correu o sacerdote, suando em bicas dentro dos seus paramentos, pois de calor intenso era feita a noite.
A reunião poderia ser rápida, pois a tese defendida pelo padre, a manutenção do casamento – “Aquilo que Deus juntou não o separe o homem” – teve aprovação da maioria absoluta (dona Zizinha ainda deu razão a Lúcia, improvisando o argumento do perigo à integridade física, sem sucesso), mas transformou-se numa longa jornada noite adentro. É que o pastor Freitas, dado a leituras edificantes, fez uma citação em forma de pergunta que inquietou a todos: “quem de nós vai pôr o sino no pescoço do gato?” Passada a surpresa, os três olharam para dona Zizinha...
– Eu, não! – disse a matriarca dos Kruschewsky Sá. Ela, sim! Feito embaixadora junto a Lúcia, entrou no quarto e com a vítima, que dizer, a recém-casada, conversou coisas de que jamais se soube. O que se sabe é que, depois de meia hora de cochichos, Lúcia resolveu deixar o dito por não dito e regressou, pelo braço de Berto, à casa (ele com ar vitorioso, ela um tanto cabreira), e viveram felizes até o dia em que Deus houve por bem levá-los. Do êxito daquela reunião restam provas cabais e insofismáveis: seis filhos, oito netos e três bisnetos de Berta e Lúcia.