Do Outro Lado do Rio
Hélio Pólvora
— Ei,
senhor.
Sentado na popa
de sua canoa, um remador fazia-me sinais há algum tempo.
— Ei.
— Quer
atravessar?
— Não sei
ainda. Mais tarde.
— O outro lado
do rio é bonito.
— É bonito ou
está bonito?
Ele não
entendeu, ou então não quis estabelecer diferença. Para que? Miudezas. Olhava-me
com ar absorto e com a paciência de quem lida com viajantes indecisos. Vi que
uma barba rala e alourada cobria-lhe o rosto, e que tinha o nariz curvo. A
cabeça encoberta por um chapéu de palha mostrava apenas a sombra dos olhos.
Visto de perfil, parecia velho, mas ainda robusto, e com um jeito afiado de ave
de rapina pousada num galho.
Continuei a
olhar o rio, que parecia estancado, sem correnteza, mas movimentava de leve as
águas, de forma a escorrer de forma quase imperceptível. A água não estava
escura ou baça, nem clara. Parecia água nova, trazida das cabeceiras onde
decerto chovera. Mas não estava barrenta. Mesmo sem transparência, transmitia
uma superfície de espelho.
— Está assim há
dias — disse o remador.
— O quê?
— A água do
rio. Costuma ser clara, fina. Choveu, o leito subiu e a correnteza parou.
— O senhor é
canoeiro há muito tempo?
— Desde menino.
Puxou mais o
chapéu sobre os olhos, como a proteger-se de uma luz cegante, e recordou que,
antes da ponte, a travessia era feita em canoas chamadas besouros. Alongadas,
com duas tábuas atravessadas à guisa de bancos, algumas tinham motor de popa. O
motor chiava, por isso deram-lhes o nome de besouros. Atravessava-se o rio
recebendo na roupa salpicos de água. Às vezes a superfície do rio rolava grossa,
como um tapete sujo a distender-se, e nesse caso as canoas oscilavam,
emborcavam. Quem não soubesse nadar, afogava-se.
— O senhor
socorreu algum viajante?
— Não fui feito
para essas coisas — respondeu em tom seco.
O sol voltara a
luzir por entre gotículas da água suspensas. Um arco-íris foi-se delineando do
outro lado do rio, ao longo da encosta verdejante que cobria o litoral. Em
baixo, numa enseada indistinta, os pilares da ponte. Não se via movimento na
ponte, talvez por causa da distância. Apurei os olhos. Nada, sequer um vulto,
nenhum automóvel.
— Ninguém
atravessa pela ponte? — arrisquei.
— É uma
travessia muito direta, que depende da vontade de cada um. No fundo, meu senhor,
ninguém gosta de atravessar.
Não entendi
então porque as autoridades mandaram construir a ponte, e porque, havendo ponte,
canoas e barqueiros ainda aguardassem viajantes fortuitos.
— Há dois
caminhos — o remador voltou a falar, como se me adivinhasse os pensamentos. — As
pessoas preferem vir para cá, como se não esperassem encontrar este cais antigo,
estas canoas, esta solidão. Chegam e, então, já que aqui se encontram,
atravessam. O caminho da ponte é uma escolha deliberada, como eu já lhe
disse.
Cala-se, olha o
marulhar das águas no casco da canoa. O sol aumenta de intensidade, vejo que o
arco-íris do outro lado se vai dissipando. Mas a água nada reflete, é um espelho
embaciado.
— Deve ser
bonito do outro lado — eu digo.
O remador se
agita, seus olhos faíscam sob a aba do chapéu.
— Pode ter
certeza, senhor. É um espetáculo.
Um espetáculo.
Fico a saborear esta palavra, como quem a mastiga. E, estendendo a vista até o
outro lado, encho os olhos com uma encosta ligeiramente escarpada. Está verde,
varrida pelo sol, e brilha, brilha como se fosse um vitral do qual se coassem
muitas cores, as cores do arco-íris, o verde e o amarelo em predomínio. Um
bosque extenso e profundo, sem clareiras, de árvores irmanadas que devem formar
uma alfombra com a sua copa generosa. No chão, naturalmente folhas secas,
imagino que folhas outonais, ferrugentas, a formarem tapete macio. Olhos d´água,
troncos secos que se oferecem como bancos, pedras limosas em que descansar os
olhos, lagos de água límpida. E suponho que frutos. O vento espalha a fragrância
de suas polpas, o odor de seus líquidos. É, o remador tem razão, deve ser
convidativo o outro lado. Deve ser bom.
— Muitos
viajantes não voltam para o continente — diz o remador. — Preferem ficar naquela
ilha comprida. Alguns pedem que eu espere, querem dar um passeio pelas praias
desertas e limpas, querem sentir o perfume das trilhas, saber se vão dar em uma
aldeia. Outros mais decididos vão logo dizendo, antes que eu encoste a canoa:
”Não me espere, remador. Eu vou ficar”. Estou acostumado a todas as reações. Sou
observador, entende?
Sei que é. Ele
se antecipa aos meus pensamentos, adivinha o desenrolar lento das minhas idéias.
Um interlocutor desses, eu penso, é um bem na vida. Em geral não nos ouvem. As
pessoas fingem escutar, mas em verdade escutam a si próprias, e o fazem por
educação, a pensar no que vão dizer, no que desejam ouvir, ou no que pretendem
induzir o outro a dizer para que tenham afinal a confirmação da resposta. Ah, é
preciso saber escutar, é preciso saber ter ouvidos e fazer com que eles se
apurem para ouvir nos momentos certos. Aquele remador tem o instinto da conversa
mútua, do diálogo. Com ele o monólogo da vida cessaria, a trituração interior
que gera angústias se desfaria em pó com que aspergir e esconjurar todos os
nossos espaços vagos.
— A ilha tem
nome?
— Não. É apenas
o Outro Lado.
— O Outro
Lado?
— Sim, senhor.
O Outro Lado do Rio.
Duas touceiras
de erva sumarenta, muito verde, desciam pelo rio, vagarosas. Sem correnteza
levariam horas a chegar a alguma praia, porque os rios sempre despejam suas
águas no mar, em outro rio ou num lago. Há sempre uma praia, haverá sempre uma
margem em que naufragar ou secar ao sol.
— Baronesas —
diz o barqueiro.
— Têm um ar
distinto.
— E cobras
dentro das touceiras — prossegue o barqueiro. Vira-se, dá uma cusparada no rio.
A voz trai um tom de desgosto. Olha as baronesas arrancadas de barrancos, rio
acima, na estação das chuvas, e completa: — Vai ser uma longa viagem.
— A não ser que
vente — eu digo.
— É, a menos
que venha vento forte.
— Acha que vai
ventar?
— Não. Hoje o
dia escurece cedo, mas sem chuva e sem vento.
— Tem
certeza?
— Tenho. É a
experiência. O cheiro do vento a gente pega no ar.
Dou alguns
passos pela margem de terra nua, sem ervas, com pedregulhos. Ninguém mais,
somente eu e o canoeiro, que, com sua calma, parece estar ali à minha espera.
Melhor, à minha disposição. O tempo não o incomoda, é como se ele tivesse todo o
tempo de uma vida galática, de uma eternidade. Não sou dado a enigmas, mas de
súbito me vem a impressão de que marcamos um encontro ali naquela margem
deserta, e que ele está ali com a sua canoa para me prestar um serviço, para
levar-me à outra margem. Mas como saberia que eu, nas minhas andanças às vezes
sem rumo, contemplativo, imerso em meditações, iria dar ali, naquele antigo cais
de um tempo em que havia uma chusma de canoeiros e viajantes ávidos por escarpas
verdes do outro lado do rio turvo?
— Está com
medo? —pergunta o canoeiro.
— Medo? De que?
De quem?
— Não sei.
Talvez medo do senhor mesmo. Ou de mim.
— O senhor não
me fez mal.
— Nem farei.
Estou aqui somente para levá-lo, se quiser atravessar. Se sentir que chegou a
sua hora de atravessar.
— Como vou
saber? Nunca tenho certeza de nada. Certeza somente a de estar vivo
— Ainda bem.
Tem pelo menos esta, que explica o medo.
— Como
assim?
— O senhor sabe
que está vivo e isso lhe dá medo. Estar vivo é bom, mas o bem não dura. Nada na
vida está em repouso permanente, nem mesmo as pedras, que um dia se transformam
em pó.
— E qual seria
o estado perfeito, o bem-estar supremo?
— O não-ser.
Aquela noite escura, de uma escuridão total, sem desejos, sem necessidades.
— Uhm... Alguém
já disse isso com outras palavras. Creio que foi Schopenhauer, um filósofo
pessimista. Não se deve temer o não-ser, porque dele viemos. Ao existir, vemos
então que o não-ser tem suas vantagens. Estar vivo é um problema. A vida seria,
nesse caso, o medo crescente de algo melhor. Estou certo?
— Para mim,
está. O maior sinal de cultura consiste em perder o medo. É preciso atravessar,
atravessar sempre.
Começo a
examinar melhor o remador. Humilde, mal vestido, pés no chão, e, no entanto,
idéias profundas. Quem o teria ensinado a filosofar? Quem o teria aproximado de
mistérios?
Do outro lado
do rio o litoral escarpado adquire uma tonalidade enfermiça de poente. Cores
desmaiadas, com a luminosidade mortiça de velas. Mas seriam muitas velas juntas,
e todas acesas, e por isso ali não se fazia noite, a luz resistia às trevas,
tangia a noite, que já começava a tombar, para o lado de cá, onde estávamos o
remador e eu. E a noite, desdobrando a sua capa sobre o rio, enlutava
definitivamente os restos de um dia a apagar-se.
O remador
protege o pescoço com a gola aberta do casaco. Dou um passo hesitante, talvez
movido pela necessidade de fazer um movimento, na direção da canoa. Ainda não
sei se vou atravessar o rio.
— Resolveu
atravessar ? — pergunta o remador, com um, sorriso que me parece irônico.
— Acho que sim.
Afinal, do outro lado há luz.
— Os poentes
são sempre longos na Ilha do Outro Lado.
Sento-me na
tábua do meio da canoa. O remador entra na água rasa e dirige-se à margem. Com
certeza vai impelir a canoa para longe da areia, para o fundo, antes de tomar do
remo e iniciar a travessia.
A noite cai
depressa, como se alguém no alto soltasse as dobras de uma cortina escura. A
canoa oscila, a água bate nos costados e na proa, em baques fofos, um vento
morno, com um toque de frio, me percorre o corpo, deixa uma sensação de carícia.
As mãos coçam. Estão ocupadas com o remo, na verdade empunham o remo, sou eu,
afinal, quem rema nesta canoa — o único a remar. O canoeiro ficou em terra, seu
perfil recurvo absorvido pelo silêncio, pelas trevas.
Eu remo de
coração leve para o âmago da noite ou para o facho de luz, não sei bem. A luz
que me parecia brotar da Ilha do Outro Lado brilha agora no antigo cais onde
embarquei. E as trevas do velho cais caem sobre a Ilha, lhe acentuam a silhueta
esguia.
Para onde vou?
Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio
do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não
sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para
o lívido alvorecer?
(Do livro Contos da Noite Fechada, 2004)
(Do livro Contos da Noite Fechada, 2004)