A NEGAÇÃO DO OUTRO - Cyro de Mattos




A Negação do Outro 

Cyro de Mattos


A criatura humana procura aspectos negativos no outro para com a exclusão afirmar-se como o bom, o melhor, o forte.  O criador de realidades espirituais e o que pugna pelas coisas materiais não diferem, em essência, um do outro. É a mesma criatura que gosta de encher a alma com egoísmos. Pobreza da alma é clave da vaidade  na qual os seres humanos gostam de tocar. O velho teme o novo, este recusa o velho. Quando em verdade se vê o velho, em sua maneira de ser,  também propor  o novo.  E o novo, na sua maneira de estar no mundo, incorporar o velho naquilo que já foi desbravado, transgredido e consolidado. A vida como ela é  mostra-nos diariamente  como somos frágeis e contraditórios. Em retratos sem retoques exibimos como gostamos de protagonizar o   trágico e o cômico.  
      Em Perto do coração selvagem, a romancista Clarice Lispector comenta um tipo de postura que temos para ferir encobertos objetivos e  tirar proveito de certos momentos: “Mesmo os grandes homens só são verdadeiramente reconhecidos depois de mortos. Por quê? Porque os que elogiam precisam se sentir de algum modo superior ao elogiado”.
       Quantas vezes já vimos o  ser humano maquinar  a razão e eleger o mal como modo de exercitar a vida?  Nossa incompletude é feita de misérias, vaidades. Somos impelidos pelo instinto do símio que aniquila o anjo. E o pior é sabermos que isso não leva a nada. O artista não foge à regra  quando projeta realidades  para abraçar círculos.
       Nessa guerra que existe por aí, de cada um  só pensar em si, o habitante do país das letras possui também suas fraquezas. Na sua arte de reinventar a vida, ele pesa o imponderável no tecido das ideias e avança um pouco pela obscuridade das coisas. Tenta negar a morte com a palavra que simula emoções diante do mundo. Através da cumplicidade do leitor torna o mundo mais viável. Mas nessa guerra sem testemunhas, como alerta Osman Lins,  entram o poder e a glória, conquistados na ampliação de espaços que abrangem o adversário, separado por barreiras de fogo, temores, invejas e transtornos.
      Otto Maria Carpeaux informa em seu livro Uma nova história da música que  Tchaikovsky tinha opiniões grotescas sobre a  música ocidental. Dizia que “Bach é um bom compositor, mas não é um gênio”, Haendel “é compositor de quarta categoria.”  De Beethoven só gostava das obras da mocidade, achava as outras composições “caóticas”. Brahms seria “uma mediocridade arrogante”. Wagner inspirava-lhe “tédio infinito”. Seu ídolo era Mozart. Detestava assim toda a outra grande música.
     Essas opiniões de Tchaikovsky diante da boa música ocidental fazem lembrar agora um autor que pertenceu à minha geração. Sua paixão era  fazer a leitura crítica da vida através dos sinais visíveis da escrita. Desde rapaz quis ser um grande romancista. Só ele existia como bom escritor, os outros de sua geração não iam permanecer, tinham falhas gritantes quando escreviam  o texto literário.  Ninguém lhe escapava. Além desse caso, houve  também aquele outro  com um autor de minha geração. Se não estivesse  na confraria ou na parceria da afetividade, eleita por conveniência, no fundo de tudo cada um à procura de salvar a si mesmo,  para ele não era mesmo  escritor. Tanto em um caso como no outro, eles não consideravam o  que li certa vez em um parachoque de caminhão: MUITAS SÃO AS FORÇAS  SÓ DEUS É O PODER.
       Um dos verdadeiramente grandes escritores americanos do nosso tempo, um dos maiores de todos os tempos, Prêmio Nobel, o romancista William Faulkner confessou certa vez que, se não tivesse escrito seus livros, algum outro o teria feito: Dostoievski, Hemingway, todos nós. A prova do que afirmava estava no fato de que existiam três candidatos para a autoria das peças de Shakespeare, mas o que importava não era  quem  escreveu Hamlet, Sonho de Uma Noite de Verão, Romeu e Julieta,  mas o fato de se ter escrito esses livros.
     De acordo com o renovador do romance moderno, “o artista não tem importância. Só é importante o que ele cria, já que não existe nada de novo para ser dito. Shakespeare, Homero, Balzac, todos eles escreveram as mesmas coisas e, se  tivessem vivido mil ou dois mil anos, os editores não teriam, desde então, necessidade de ninguém mais”.  O que afirmou o autor de várias obras-primas do romance universal é para ser considerado. Dá para se pensar, não é mesmo?



*Cyro de Mattos é escritor e advogado. Premiado no Brasil e exterior. Membro Titular do Pen Clube do Brasil.