A FUGA DE ADONIAS FILHO




A fuga de Adonias Filho
Hélio Pólvora*

   Adonias Aguiar, pai do romancista Adonias Filho, era severo, de uma geração de disciplinadores, de chefes de clã, de patriarcas. Prezava, assim, o empreendedorismo. Orgulhava-se, como tantos outros que amealham fortuna, da coragem e determinação com que escapam à origem modesta e sobem na vida por seu próprio esforço e iniciativa.
   Muitas propriedades cacaueiras do sul baiano foram feitas no braço, cavadas à unha e temperadas com o suor de pioneiros.  Seria esse, mais ou menos, sem o exagero da minha retórica, o caso de Adonias Pai, que chegou a ser proprietário de várias fazendas de cacau em Ilhéus, na época da abastança — das últimas duas décadas do século XIX aos meados do século passado.
   O ensaísta Gustavo Falcón põe Adonias Pai no elenco dos capitalistas ilheenses, no livro Os Coronéis do Cacau (Solisluna, Salvador, 1995). O morgado trajava a rigor (isto é, vestia ternos de linho inglês), gozava de prestígio na sociedade, tinha nome nos jornais e emprestava dinheiro. Só não sei se frequentava o Bataclan, cabaré notabilizado nas ficções de Jorge Amado, com espertas damas argentinas, francesas e polonesas.
  Esse coronel Adonias Aguiar, que talvez tenha comprado patente da Guarda Nacional, tinha um traço comum aos moderados de sua roda: avançava somente até onde ia o braço estendido. Pés fincados no chão e atento à realidade, pressagiava, no entanto, possíveis turbulências financeiras no horizonte próximo — daí o impulso à acumulação de capital.  Todos os coronéis exibiam essa inclinação — alguns por falsa modéstia — ao pessimismo. Alguns chegavam ao absurdo de pensar se repetiriam amanhã o suculento prato de hoje.
   Guiado por uma moral rígida, que se empenhava em passar aos filhos, os coronéis do cacau cobravam obediência pronta, da família e dos empregados. Tinham, afinal de contas, o poder de mando. Sua palavra devia ser tomada por lei.
   Ao perceber que um dos filhos, o adolescente Adonias, propendia às letras que não eram promissórias, e parecia entregue a devaneios inócuos, o velho insurgiu-se. Queria-o médico, teria de ser médico.
   O conflito agravou-se. Um dia o patriarca perdeu as estribeiras e soltou os cães de guerra: se o filho queria de fato ser escritor, que sumisse então da sua casa e de suas vistas, que fosse para bem longe e lá ficasse.
   Sem ajuda financeira, o futuro escritor fugiu para o Rio de Janeiro. Estava com 16 anos. Mostrou que tinha herdado o orgulho do pai. Que, embora de menor idade e dependente, podia fazer sozinho seu début na vida. Aliás, naquela época (começos do século passado), os filhos se atormentavam em busca de oportunidades, nas vésperas  dos 18 anos — e se não seguiam a atividade paterna, tratavam de safar-se por conta própria o mais cedo possível.
   Adonias Filho morou em um pensionato na Rua do Riachuelo, antiga Mata-Cavalos, no centro do Rio.  Sua nora Thais Rudin lembra-se que, muitos anos depois, já famoso, ele a levou para ver a pensão e recordar cinco anos de vida solitária e anônima, enquanto em Ilhéus a  mãe Rachel (em solteira, Rachel Bastos), costurava a reconciliação, fazia-o retornar à sombra do pai.
   Seguiu-se um período em Salvador, quando completou o curso secundário no Ginásio Ypiranga e se iniciou no jornalismo. Na segunda transferência para o Rio, em 1936, conhece Rosita Galeano, secretária na Livraria José Olympio Editora. Apresentados pelo editor, se casam um mês depois e ele rasga a carteira de trabalho da esposa. 
   O Rio era então a maior referência intelectual do país. Teria de passar por lá e conviver com a seleta inteligência todo aquele brasileiro que desejasse fazer carreira literária, obter cargos públicos, abrir espaço nos jornais e chegar por meio do mérito — ou por artes de cortesão —  à Academia. Não é muito diferente, ainda hoje. 
  Cerca de cinquenta anos durou a segunda permanência, coroada pelo desejado sucesso. No entanto, Adonias jamais rompeu os laços emotivos com o sul cacaueiro da Bahia, por onde andou a cavalo, descortinou paisagens, ouviu pássaros, falas e casos narrados por arrieiros à entrada dos povoados.
   No VII Encontro Nacional de Escritores, em Brasília, 1973, quando premiado pelo conjunto de obra, ele ressaltou em depoimento “a vinculação física, que permanece até hoje, do romancista com a sua terra”. Tanto assim que veio a passar os últimos anos de vida na fazenda Aliança, legado paterno. 

*Hélio Pólvora, jornalista, cronista, ficcionista, tradutor, é membro das Academias de Letras da Bahia, de Itabuna e do Brasil - DF