FEIRA DE SÃO JOAQUIM
Aleilton Fonseca*
Era manhã de domingo, fazia um calor de rachar. O Sol imperava no céu azul, esquecido das nuvens esparsas.
– Vamos à Feira de São Joaquim?
Ana surpreendeu-se com o convite inusitado do marido.
– Não brinca; tem certeza? – exclamou, divertida e impactada.
– Sério. Resolvi escrever sobre a feira. Que ir comigo?
– Claro! Sempre tive o sonho de ir a essa feira.
De fato, eles nunca haviam ido àquele lugar tradicional e mítico, onde
pulsa um coração coletivo cheio de magia, cores e sugestões.
Ana
adorou a ideia. Finalmente ia conhecer a famosa Feira de São Joaquim.
Nascida na cidade, desde menina ouvia o pai falar da feira. Primeiro era
a Feira de Água de Meninos. Depois a Feira de São Joaquim. Por que a
feira mudara de nome? Ela não sabia. Ana lembrava das sacolas que o pai
trazia de lá. Ao chegar, ele ia tirando uma a uma do velho fusca azul
claro. Ela e os irmãos faziam festa, ajudavam a carregar as compras. A
mãe recomendava cuidado para não estragar as frutas e as verduras. E o
pai sempre trazia da feira uma novidade, um brinquedo, um doce. E não
faltavam as balas de mel, coco e azedinha.
– Me leva pra feira, pai? – todo domingo Ana arriscava o pedido, como se repetisse uma melodia infantil.
O pai sorria, mas não levava. Explicava que a feira era longe, do outro
lado da cidade, não era lugar para crianças. Havia muita gente, muita
barraca, muita confusão. Ela podia se perder por lá. Já pensou? Mas
prometia que, quando ela crescesse, aí sim iria com ele fazer as compras
na feira.
– Um dia eu vou lá comprar uma boneca de pano pra mim – ela planejava.
Ana cresceu sem realizar seu sonho. O tempo passou, as coisas se
modificaram muito. O pai passou a fazer as compras num mercadinho do
bairro. Ana e os irmãos cresceram, e cada qual foi viver sua vida. A
feira ficou à margem de sua história.
Agora, Humberto resgatava a
história dos arquivos, atiçava de volta a sua antiga curiosidade de
menina, dando ânimo novo à mulher madura. Ana ia enfim conhecer a feira.
A promessa do pai finalmente seria resgatada e cumprida.
O
convite do marido era uma melodia que brotava dos anos idos da infância.
Ana sabia que São Joaquim era uma das maiores feiras livres do mundo.
Fazia parte da tradição popular, como uma espécie de romaria dominical
da população de baixa renda da cidade.
– Vamos apenas visitar a feira, sem obrigação de comprar nada.
Ana não respondeu, mas, pelo sim pelo não, apanhou duas sacolas de compras.
O rumo da aventura estava traçado. De carro, saíram da orla da Pituba,
seguiram pela Av. Magalhães Neto; apanharam a Av. Bonocô. Passaram por
Aquidabã, atravessaram o túnel e chegaram à cidade baixa. Seguiram o
fluxo pela Av. Frederico Pontes. E logo mais entravam no estacionamento,
próximo à cesta do povo. Debaixo de sol, em trajes de passeio, eis que
chegavam à entrada do labirinto, por onde se espalham inúmeros fios de
Ariadne.
A feira é um desfile, uma alegoria, uma narrativa, um poema.
Ana e Humberto iam com calma, sem pressa. Paravam, deixaram os olhos
circularem pela multidão de populares. E faziam fotos bem caprichadas.
Muita gente. Sobretudo aos domingos podia-se assistir ao verdadeiro
desfile humano, de enorme variedade, tanto dos moradores dos bairros
populares como da região do recôncavo baiano.
Entraram. Em meio à
enxurrada de passantes, o casal se divertia, extasiado, entregue ao
calor da hora. Era algo nunca visto: exótico, plástico, esquisito – e,
ao mesmo tempo, tão normal, tão humano, tão natural. Eles iam se
esbarrando no povo do labirinto. Paravam. Fotografavam pessoas, balcões,
estantes, produtos, detalhes. Observavam os nomes das barracas. A
incrível miscelânia criativa de produtos postos à venda, para atender a
necessidade, a curiosidade e a imaginação dos fregueses.
Eles
avançavam pelas ruas da feira, como visitantes que se deixam impregnar
por tudo que veem ao redor. A feira ia-se revelando passo a passo, como
um mosaico livre, um desenho de formas, cores e sabores. Espraiava-se
numa vasta área, à beira da Baía de Todos-os-Santos, num ponto marcante
do bairro, numa área de cerca de 34 mil m². Via-se ali uma zona franca
de comércio popular, onde se encontrava de tudo que pudesse inventar a
imaginação mais fértil de um louco ou de um artista. Secos e molhados,
utilidades e bugigangas, trens e objetos, coisas inimagináveis. De tudo.
Verduras, hortaliças, frutas, carnes, utensílios, plantas e raízes,
remédios caseiros, artesanato de barro, alguidares, cuscuzeiros, potes,
panelas, imagens de santo, produtos para rituais de candomblé, como
orobôs, aridans, obis, gervão e muito mais. Até cadeiras de orixás.
Quem chega ao seu coração, percebe que a feira exibe sua marca
indelével, viva e pulsante. Ela respira e se bole ao longo de cinco
décadas. Sua indisfarçável sedução: variedade, exotismo e preços baixos.
Com apenas meio século de existência, a feira é, no entanto, antiga e
tradicional em sua aparência, em sua forma e em seus costumes. Herdou o
jeito e a magia da antiga Feira de Água de Meninos, que foi destruída
por um grande incêndio.
Os feirantes perderam tudo. E, em meio à dor e
ao desespero, surgiu São Joaquim como uma solução provisória, para
abrigar os feirantes e acomodar a situação. Desde então, a feira dá
alento a inúmeros trabalhadores informais, uma esmagadora maioria de
afro-descendentes, cuja origem remonta aos antigos escravos de ganho, os
primeiros vendedores ambulantes e feirantes que criaram a tradição das
feiras livres na Bahia.
Impossível visitar a feira e sair de mãos
vazias. Ana e Humberto fizeram bem ao trazer as sacolas. E não podiam
resistir, levando dali apenas fotografias. Às compras, então. Aqui um
quilo de farinha, vinda de Nazaré, fresquinha, deliciosa no cheiro e no
paladar. Adiante, um litro de acerolas fresquinhas. Mangas que pareciam
ter sido colhidas ainda há pouco. Abacaxis exalando seu perfume. Acolá
um quilo de carne seca, charque da melhor, ponta de agulha, sem um naco
de gordura. E tudo ao preço três vezes menor do que a soma que pagariam
num mercado elegante da Pituba.
Ana e Humberto iam por um dos
corredores, desviando de braços e pernas, sacolas e carrinhos de mão,
quando foram surpreendidos. Era a abordagem da cigana. Idosa e ágil, ela
arrebatou a mão de Ana e ofereceu rapidamente o seu serviço típico de
feira livre:
– Deixa eu ler sua sorte, minha filha – disse, com um olhar que oferecia e suplicava ao mesmo tempo.
Ana, encabulada, quis puxar a mão. Sabia que as ciganas usavam sempre
esse truque, a fim de ganhar algum dinheiro nas feiras. Entretanto,
deixou, afinal aquilo também fazia parte da festa.
– Ponha uma nota de dinheiro em minha mão, para eu ler sua sorte.
Ana apanhou rapidamente no bolso da bermuda uma nota de dez reais. A
cigana ia pedir mais uma nota, mas recuou da ideia. Fixou a mão da
consulente e revelou:
– Tem muita inveja ao seu redor, minha filha.
Inveja de seu amor por seu marido, e da união de vocês. Cuidado com as
falsidades.
– Sim, mas tenho de ir... meu marido já vai lá na frente, não posso me perder dele...
A cigana garantiu a Ana que faria uma oração pela felicidade do casal. E recomendou.
– Seu marido é boa gente, mas ele se impressiona fácil, minha filha.
Tenha cuidado, cuide dele e tenha muita paciência com ele.
– Tá certo.
– Você vai encontrar o que o seu coração veio buscar nessa feira. Vai com Deus.
A velha cigana seguiu em frente e Ana ficou pensativa diante de sua última frase. O que a vidente queria dizer com aquilo?
Ana acelerou o passo para alcançar Humberto, que ia à frente sem
relaxar o ritmo da caminhada. Ao notar a abordagem da cigana, ele fora
logo se esgueirando, para forçá-la a abreviar a consulta. Não gostava
dessas adivinhações de rua. Mas admitia que na Feira de São Joaquim tudo
isso cabia, tudo tinha seu devido lugar.
– E então, vai ficar viúva muito breve ? – ele pilheriou.
– Ora, nem pensar. Você devia era agradecer à cigana.
– Por quê, ora essa? – disse ele, com ironia.
– Ela lhe elogiou, e disse para eu cuidar de você e ter paciência.
–Ah, até que enfim uma cigana sábia! Tinha de ser na Feira de São Joaquim!
Adiante, pararam diante de uma barraca de artesanato de barro –
sortido, variado, colorido. Era uma exposição de utensílios de uso
domésticos, de decoração, popular e de objetos de rituais de candomblé.
Valia a pena parar, olhar, examinar, admirar a arte do povo, em seus
emblemas, suas aplicações e seu imaginário. Havia ali um pote que se
destacava. E eles olhavam com interesse. O dono da barraca, um senhor e
idoso veio atender:
– Esse pote aí é coisa de primeira, faço um
preço de amigo e o casal leva pra casa agora mesmo – acercou-se,
bonachão, com jeito de bom vendedor.
– Ah, sim, é muito interessante – assentiu Ana.
– De onde vem esse artesanato?
– De onde? Ah, minha filha, isso tudo aí vem do Recôncavo... chega aqui
na beira do cais da feira, vem de saveiro. É coisa sagrada, que vem de
avô para neto, de geração a geração. Coisas e saberes de nossos
antepassados, os antigos escravos que fugiam dos engenhos:
– E qual é o preço?
– Do pote ou da barraca toda? – ele disse, como se pilheriasse,
apontando para a tabuleta pregada mais acima do objeto. Ali se lia, em
português popular: “Vendi-si esta barraca”.
– Não, do pote – esclareceu Humberto, rindo.
– Ora, vocês podiam investir aqui. Vendo a barraca por um preço de irmão...
– Não, não temos tino de comércio... – Ana explicou divertida
– Tudo se aprende na vida, minha filha.
– Mas qual é o preço do pote, seu... qual é seu nome mesmo?
– Inácio, eu sou Inácio, conhecido aqui de tudo mundo, que estou nesse ramo desde menino, ajudando meu pai.
– Eu sou Ana e ele Humberto. O senhor é feirante desde menino, aqui?
– Não, aqui não. Comecei na Feira de Água de Meninos, que ficava lá pra
mais adiante. Eu ajudava meu pai, numa barraca que meu avô tinha
deixado pra ele. Meu pai se chamava Firmino, e quando ele era garoto
trabalhava ajudando meu avô na barraca. Depois, quando meu avô morreu,
ele ficou dono, recebeu de herança. Aí eu ajudava meu pai. Mas a feira
pegou fogo e nós perdemos tudo, minha senhora. Meu pai ficou acamado,
cheio de dívida pra pagar, e sem nada pra vender.
– E aí, como se resolveu?
– Aí eu tomei conta de tudo. Eu tinha já 20 anos – que agora estou já
fazendo 70 – e enfrentei a situação. A gente se ajeitou por aqui;
cederam esse espaço aqui para fazer a nova feira e muitos dos feirantes
se aprumaram novamente. Eu trabalhei duro, paguei as dívidas, limpei o
nome de meu pai. E toquei o negócio pra frente – até hoje. Mas foi com
tempo, muito tempo.
Outros nunca mais se levantaram na vida. Muitos
morreram de desgosto, devendo a Deus e ao mundo.
– E o senhor tem filhos que lhe ajudam?
– Tive três, e eles me ajudaram um tempo. Mas dois deles foram embora
para São Paulo há muito tempo... Eles são feirantes lá. Dizem eles que
lá dá mais resultado, mas isso não sei não.
– E o seu outro filho, seu Inácio?
– Ah, esse filho meu, o mais novo, tá um homem feito agora... me ajudou muito, mas agora não dá mais... nem eu quero mais.
– Mas, por quê?...
– Porque ele não vai ser feirante como meu avô, meu pai, eu e os
irmãos...
Por isso estou vendendo a barraca. Ele vai ser outra coisa na
vida...
Justo neste momento chegava um rapaz à barraca, disse
bom-dia e cumprimentou o velho barraqueiro. E ele fez a apresentação do
filho. Era Isaque, seu filho mais novo, que não seria mais feirante,
quebrando assim a tradição da família. O rapaz repetiu o cumprimento ao
casal, comentou algo com o pai, e apontou a tabuleta que anunciava a
venda.
– Precisamos consertar aquilo; o certo é “vende-se”, meu pai...
– Ah, deixa pra lá. O povo entende o que quer dizer.
– E por que seu filho não será feirante? – Ana voltou ao assunto.
– Ah, sim, minha filha, eu não expliquei ainda a situação. Isaque teve
mais cabeça para os estudos do que para feira. E faz alguns dias que ele
recebeu o resultado de umas provas que fez numa escola porreta, uma que
tem aí na cidade, uma tal de faculdade não-sei-o-quê. Diz que é
Federal. E que tinha umas vagas pra gente assim como ele, de família
humilde como a nossa. Ele passou. E agora vai estudar para ser doutor
advogado. A senhora já pensou que benção que Deus está me dando no final
de minha vida? Ter um filho formado na faculdade, pra ser doutor
advogado! Pela primeira vez na nossa família, vamos ter uma pessoa
formada. Vai ser uma festa de arromba!
Seu Inácio rompeu em lágrimas
e abraçou o filho, que o amparava com o braço, um pouco vexado com a
cena. Ana abraçou o dois e também se emocionava com a situação tão
tocante e inusitada. Humberto fez uma foto para registrar o momento
raro.
– Parabéns, seu Inácio... vocês são dois vencedores! – comentou Humberto.
– Vocês merecem essa alegria abençoada – disse Ana.
– Deus lhe ouça, minha filha... E perdoe a minha emoção de velho abobalhado.
A feira ao redor continuava a fervilhar. Pulsava como um útero de
emoções possíveis, somente à espera de mais oportunidades. Era uma
verdadeira faculdade viva onde se aprendem lições de convivência,
entendimento e solidariedade. Pátio aberto de emoções compartilhadas.
Era hora de seguir adiante. O casal ia partir, depois de conhecer mais
um personagem da feira e fazer dele um amigo inesquecível. Iam com a
máquina cheia de imagens. Sacolas cheias de óbolos. Corações mais
generosos.
– E qual é o preço do pote, seu Inácio?
– Ah, minha filha, esse pote não tem preço; é muito valioso – o velho brincou.
– Mas... nós queremos levar...
– E vão levar sim, de brinde da casa... é um presente que dou ao casal, de todo coração.
– Mas, não; que é isso, seu Inácio!
– Não recuse, que é feio; não assenta para uma pessoa tão boa como a senhora.
Inácio foi logo embrulhando o pequeno pote, com a destreza que compete
aos feirantes experientes. Colocou o objeto, com cuidado, numa sacola de
plástico, e entregou a Ana com a satisfação escrita no rosto.
– Muito obrigada. Deus lhe pague – ela agradeceu.
– Assim é que se diz, minha filha. Apareçam aqui outro dia. Enquanto eu
não vender a barraca, vou estar sempre por aqui vendendo minhas
bobagens.
Ana e Humberto, ainda impressionados, despediram-se do
amigo e do rapaz e saíram. Entraram de novo na roda-viva da feira,
acotovelando-se em meio à multidão apressada. Eram cheiros, cores,
formas e sabores que se misturavam diante de seus olhos. Cruzaram de
novo com a velha cigana. A vidente reconheceu a consulente e sorriu
discretamente para ela, com olhos bondosos. Logo se dirigiam para a
saída da feira.
De repente, numa barraca pequena, uma jovem vendedora chamou a atenção de Ana.
– Veja, senhora, as nossas peças de tecido... os preços estão ótimos.
Ana parou e atendeu a moça. E prestou atenção ao estoque,
cuidadosamente. E tudo era mimoso, colorido, diversificado, muitas peças
bordadas à mão. E na parte da estante, um pouco mais acima, aguardava-a
ali o milagre.
– A boneca de pano!
Era a boneca de seus
sonhos da infância. A boneca destacava-se dentre as outras peças e se
oferecia aos seus olhos e afetos. Trinta anos depois. Ali estava,
faceira e colorida, como se esperasse o dia certo desse grande encontro.
Do livro: AS MARCAS DA CIDADE