O Futebol nas Letras Brasileiras de Cyro de Mattos
Cyro de Mattos*
Antropólogos e historiadores observam que o homem sempre gostou de
brincar com objetos redondos. Pedras, frutas e até mesmo crânios eram usados
como coisas que divertiam nas brincadeiras. Em sua evolução neste planeta, o
homem inventou diversos esportes, tendo a bola
como atração. Mas a
bola só alcançou a condição de objeto “sagrado” quando o homem descobriu
o futebol.
Literatura é a arte que se expressa por meio
da palavra. Simula a realidade objetiva fazendo uso da razão e emoção. Ao atingir a imaginação e o espírito do
outro, deflagra no registro
subjetivo toda a carga de
significantes e significados que contém sua tessitura criativa. É forma ampla de
conhecimento da vida. O futebol é a arte
que se manifesta com o pé na bola. Como na obra literária faz emergir o ser humano de seus interiores, ora alegre, todo festivo, ora com angústia e
ódio.
A literatura e o futebol são maneiras que o
homem encontrou para se manifestar em sociedade. Ambas são atividades lúdicas e
dramáticas. De uns anos para cá, a
produção de livros de futebol abordando a vida de atletas ou a
história dos clubes tem sido considerável. Não se pode dizer o mesmo de livros de ficção em relação à projeção nacional que o nosso
esporte mais popular apresenta.
No início quando era amador, o
futebol encontrou adversários entre alguns de nossos escritores. Lima Barreto, o
precursor do nosso romance social, falecido em 1922, qualificou o futebol como esporte de uma
elite que se baseia na habilidade dos pés. Para o criador do triste
Policarpo Quaresma, da rejeitada mulata
Clara dos Anjos e do cético Gonzaga de
Sá, o futebol vinha com seus termos estrangeiros e modismos para
corromper o homem brasileiro. Constituía grave ameaça às nossas coisas,
tradições e expressões. Representava o mal que devia ser cortado pela raiz,
antes que alcançasse as classes baixas.
Adotar esse tipo de esporte entre nós era ver o ridículo e o patético de uma
sociedade elitista sem conteúdo nacional na condução do aproveitamento das relações humanas.
Em compensação, já naquela época o renomado
romancista Coelho Neto era um torcedor vivamente empolgado com o esporte inventado pelos ingleses. Criou um hino para o
Fluminense, clube do coração, e teve dois filhos, Mano e Preguinho, que jogaram
na seleção brasileira. Coelho Neto foi o primeiro torcedor a invadir o gramado
inconformado com o resultado da partida.
O futebol
não deixou de ter adversários entre os nossos escritores, mesmo depois da
popularização crescente. Graciliano Ramos,
um dos grandes nomes do romance brasileiro, escreveu artigos e crônicas
que impingiam ao futebol o caráter de agente
destruidor de nossos valores regionalistas. Achava o autor de Vidas secas, um dos fundadores do
romance nordestino, comprometido com a verdade social e a psicologia de nossa
gente, que o cachação, o porrete, a
queda-de-braço e a corrida eram esportes que deviam ser praticados pelo
brasileiro, no lugar de um jogo viril
vindo de fora para atuar entre nós como fator
negativo da cultura regional.
É na crônica
esportiva, com a sua marca de prosa coloquial,
que o futebol vai encontrar espaço
no início como tema a influenciar
a imaginação e a sensibilidade do escritor brasileiro. Natural que isso
acontecesse com a crônica, de tal modo é o gênero intermediário entre o
literário e o registro objetivo do fato. Presta-se bem na imprensa esportiva
para flagrar com digressões uma partida de futebol. Logra extrair em torno do jogo a simbiose perfeita
decorrente da literatura, que fantasia a vida, e a notícia do cotidiano, que
deve ser objetiva, comprometida com a verdade. A crônica faz com que o autor assuma o papel de contador de histórias, no caso uma partida de futebol,
sem com isso o fato que está sendo focado
perca a credibilidade na informação.
O mundo
apaixonante do futebol inspirou textos admiráveis aos cronistas Nelson
Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira. Os três papas da crônica esportiva
trouxeram para o campo de nossa literatura o drama, o humor, o feitiço e o
vocabulário, que o futebol manifesta
com sua linguagem específica em torno da
bola que rola no quadrado mágico do
tapete verde.
Reconhecido
dramaturgo, Nelson Rodrigues na carreira de cronista esportivo resgata com forte
apelo popular o orgulho de ser brasileiro. A descoberta do Brasil por Nelson
Rodrigues tem na Taça Jules Rimet papel de fundamental importância. Sua
conquista afasta do homem brasileiro o
complexo de vira-latas. Ele mostra como o nosso planeta fica pasmado em cada
conquista da Taça Jules Rimet pela Seleção Brasileira, em 1958, 1962 e 1970. O
autor de A dama do lotação criou
expressões interessantes, “o óbvio ululante”, “a pátria em chuteira”, e o
personagem Sobrenatural do Almeida, para explicar a derrota de um time grande
por um pequeno. Afirmava que o vídeo tape era burro, criticava a frieza da
televisão como a dos idiotas da objetividade.
De jeito simples, João Saldanha coloca
nas crônicas e comentários informações importantes sobre o mundo da bola. Enfoca
os “subterrâneos do futebol” com o seu calendário desordenado, denuncia o
marketing excessivo, as partidas milionárias e as jogadas dos cartolas em
prejuízo dos clubes. Escreve, fala e brada
como um torcedor qualquer. Cria também expressões que acompanham o ritmo espontâneo de sua
fala como num bate-papo enriquecedor. “A
vaca vai pro brejo”, “mostrar o mapa da mina”, “entregar o ouro aos bandidos”,
“estar no bagaço”, “zona do agrião”, “ir para o vinagre”, “coelhinho de desenho
animado” e tantas outras que entraram em definitivo para o vocabulário do nosso futebol.
Em Armando Nogueira sabe-se que “ para entender a alma do brasileiro é
preciso surpreendê-lo no instante do gol”. Para
o cronista poeta, “a bola rola para todos, mas só dá bola para alguns.” Essas
referências de toque admirável, como
“se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”, ou “jogador comum vê a jogada, o craque
antevê”, encontram-se tão simplesmente
no autor de A ginga e o jogo como belezas e delícias que o futebol
inspira. Nele a escrita da crônica
esportiva vem expressa como fatura
exemplar do texto permeado com a metáfora. Esplende a estética
do belo casado com a palavra, a crônica
assim tem várias vezes um sabor de obra-prima. O cronista sabe que
as palavras nascem para encantar com um toque refinado, íntimo da bola.
O futebol pentacampeão mundial, tão na
pele do brasileiro, serve de motivo aos
poetas Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes
e Florisvaldo Mattos. Carlos Drummond de Andrade dedicou versos a Pelé e à nossa
conquista da Copa do Mundo nos gramados
do México, em 70. Nos versos triviais do poeta mineiro de
Itabira, Pelé é “o sempre rei
republicano/ o povo feito atleta na poesia/ do jogo mágico.” O pernambucano João Cabral de Melo Neto fez o
elogio do goleador Ademir Menezes, traçou o trajeto hábil da bola feita
vida com o pé, indo
até o gol na surpresa de ser. Teceu o perfil macio de Ademir da Guia e
informou em versos concisos sobre a falta de hábito do América do Rio sagrar-se
campeão. Vinicius de Moraes deslumbrou num soneto belíssimo o sempre alegre Mané
Garrincha, com as incríveis pernas
tortas fazendo jogadas geniais em
versos medidos e rimas espontâneas. O
baiano Florisvaldo Mattos encontra em Maradona inspiração para realizar um poema
longo ardentemente ligado ao futebol. Compara o mito argentino a Rimbaud,
homenageando-o como o eterno “Rimbaud dos esportes, de todos, do futebol nem se
fala, enredado na tristeza que sacode de julhos chão portenho.
Craques do
conto brasileiro recorrem ao futebol para contar uma história. O mundo
apaixonante do esporte reaparece neles
com a sua feição de prazer e dor. São tão bons de bola que driblam com facilidade em
cada cena, fazem cada história arrastar o leitor do começo ao fim. Ora usam o diálogo, Fernando Sabino em “Iniciada a
Peleja”, ora a narrativa flui para
mostrar um flagrante perturbador do esporte,
Lourenço Cazarré no antológico “Meia
Suja Encarnada de Sangue”.
Conhecem as
artimanhas do jogo de futebol irmanado
ao jogo da vida, propiciando “um bem extraordinário à alma”, mesmo que seja uma pelada como descreve Paulo
Mendes Campos em “Futebol de Veteranos”, ou uma partida para celebrar a vida,
como “O Amistoso”, de Rachel de Queiroz. Falam de um jogo constituído de
seqüências notáveis no espaço breve do conto, empregando os lances da imaginação
e observação em cada período que sufoca ou irrompe de repente no riso, tão
necessário hoje como ontem. Tratam a bola com espontaneidade e técnica apurada
que chegam a desarmar esquemas em que entram jogadas de políticos espertos e cartolas sujos na farsa.
A
história é passada por alguns de nossos
contistas ao torcedor, agora leitor, com
humor, como “Gol de Padre”, de Stanislaw Ponte Preta; pura curtição entre
meninos, “Campeonato de Futebol”, de
Luís Henrique; drama em “A Sombra”, de Caio Porfírio Carneiro, e
“A Solidão do Goleiro”, de Flávio Moreira da Costa; cenas hilariantes em “A Bola e a Rede”, de
Moacir Japiassu; angústia em “Uma Vez
Flamengo...”, de Dias da Costa, e
tragédia em “O Gol de Gighia”, de Hélio Polvora, representada naquele lance que
provocou o choro de cem milhões de
brasileiros nos lares, ruas e botecos, fazendo cair sobre “o estádio, sobre o
país inteiro, um silêncio incômodo de cemitério rústico banhado por uma lua
amarela em noite de vento gelado”.
A
história com observações e flagrantes do jogo reflete um mundo
que envolve o brasileiro nos pontos mais fortes da ousadia e paixão. É um
de seus orgulhos a funcionar tantas vezes como válvula de escape quando ocorre a
jogada espetacular em que centenas abraçam-se num só abraço, vociferam e festejam a vida como a união geral misturada com intenso prazer.
Este é o
milagre que o futebol consegue quando transfigurado em obra literária. Sempre
surge com as verdades fundamentais do mundo ficcionalizado. O leitor recebe de bandeja o milagre que
craques do nosso conto imprimem nesse
universo que tanto apaixona o homem
brasileiro. Aconteça o jogo no estádio gigantesco da metrópole com jogadores
profissionais, no campinho do interior com o piso esburacado, jogadores amadores, ou com a molecagem dos
meninos no gramado maltratado por pés descalços, apresentando lances já com algum
feitiço, sustos e emoções.
Mestres de nosso conto, como Rubem Fonseca em “Abril,
no Rio, em 1970”, Ricardo Ramos em
“Casados X Solteiros”, Antônio Alcântara Machado em “Corinthians (2 ) X Palestra
(1)”, João Ubaldo Ribeiro em “Já Podeis
da Pátria Filhos”, Luís Vilela em “Escapando com a Bola”, Orígenes Lessa em “O
Esperança Futebol Clube”, João Antonio
em “Torcedor”, Luís Veríssimo em “Choque Cultural”, Aníbal Machado em “O Defunto
Inaugural”, Antonio Barreto em “Estádio”, Duílio Gomes em “O Massagista”, “Lucrécia”, Sérgio Sant’Anna em “No Último Minuto” e “Na
Boca do Túnel”, todos eles
demonstram a paixão forte pelo
futebol, falam desse jogo como uma das faces mais alegre e sofrida do
homem brasileiro. As jogadas mais sensacionais, apuradas num toque sutil da palavra que corre na
bola, no estilo descarnado quando o
lance é mais duro, comparecem no tapete verde das letras com exemplares
histórias sobre o futebol.
Misto de
repórter, ficcionista e apaixonado torcedor do Flamengo, Jefferson Ribeiro de
Andrade identifica nos contos “Flamengo” e “Hoje Eu Não tenho Dinheiro para o
Gás” como o futebol faz parte da miséria da vida. Seu romance-reportagem Para sempre Flamengo narra uma grande
parte da vida gloriosa do rubro-negro carioca,
ao mesmo tempo que revela ações
típicas do nosso torcedor .
Contos de futebol, de Aldyr Garcia
Schlee, e Maracanã, adeus, de
Edilberto Coutinho, merecem registro à parte quando se fala nos momentos
melhores da ficção sobre o futebol que já se escreveu entre nós. O tema é recriado de maneira pungente nesses dois
contistas de importante presença em nossas letras. Os dois escritores conseguem
transmudar o futebol no literário com força surpreendente. Encanto, feitiço,
glórias e quedas estão presentes em
histórias narrando a vida com tensão e poesia. As horas do esporte que alcança
dimensões míticas num país de campeões
encontram nos dois contistas a alma sensitiva dos que se entregam por
inteiro no que pretendem contar. Essas horas com personagens lendárias ou
obscuras, vastas multidões ou pequena platéia, no espetáculo organizado ou
improvisado, centradas no cotidiano que experimenta o sortilégio de na vida
pensar e amar pelos pés.
Na produção
avulsa do conto de futebol, sobressaem algumas vozes femininas. Em
“Ninguém Morre Rindo”, da paulista
Suzana Montoro, a história revela uma autora moderna que sabe fabular,
sensível acerca do cotidiano ou seu reverso absurdo. Em “Agüenta Coração”, de
Hilda Hilst, “Escanteio”, de Anna Maria Martins, e “Que Horas São?”, de Edla van
Steen, o assunto é sério, tratado por autoras boas de bola na hora de sentir o
jogo quanto maravilhosas na arte de escrever uma peça de ficção curta. No
ensaio, Betty Milan é a primeira mulher a escrever sobre o esporte com O país da bola, em 1990. Alguns de seus
personagens nos romances O clarão e
o papagaio e O
doutor estão ligados ao futebol.
A jornalista
Clara Arreguy com a novela Segunda divisão conta as dúvidas, sonhos
e conflitos dos personagens do jogo: atletas, técnicos, repórteres e todas as pessoas
envolvidas na partida decisiva entre a
equipe paulista do Arapiara e a da Santa Fé, de Minas Gerais. Recorrendo aos
diálogos, bem colocados na trama por
quem entende do assunto, essa jornalista apaixonada pelo futebol mostra que Segunda divisão vem para ficar. Não se
trata de mais um livro de ficção sobre o esporte, sustenta-se em si mesmo, tanto na forma como
no conteúdo, possuindo muitas qualidades
literárias e significativas notações de vida. Tanto quanto a novela juvenil O azar do goleiro, do baiano Eliezer
César, que narra as peripécias de Toinho, um talentoso jogador de futebol, o livro Segunda divisão alcança o plano das
abordagens emotivas na sua escritura prazerosa.
Por que ainda não surgiu o grande romancista
brasileiro que tem o futebol como inspiração ninguém ainda conseguiu explicar
com profundidade. Somos pentacampeões de futebol, o esporte cobre mais de um
século desse país tropicalista com dimensões
continentais, chamado de “ a pátria em chuteiras”. É estranho como o
Brasil com gênios como Pelé, Garrincha, os grandes craques Nilton Santos, Didi,
Rivelino, Gérson, Tostão, Ronaldinho Fenômeno e Ronaldinho Gaúcho, não tenha
ainda o seu grande romancista. Principalmente quando é sabido que futebol e
literatura extraem da vida agudas lições, transmitem verdades essenciais do ser
humano em seu estar no mundo entre o bom e o ruim. Em ambas as atividades pulsam
os sentimentos de compaixão, amor, vingança, enfim, ventos do verso e reverso,
que sacodem toda a extensão febril da
pele no mistério do existir.
José Lins do Rego, fanático torcedor do
Flamengo, escreveu em 1941 o
romance Água-mãe, protagonizado por Joca, um
garoto de Maricá que tinha como meta na
vida treinar em um clube grande do Rio
de Janeiro para melhorar a situação da família. O autor que retratou a
civilização canavieira nordestina, nos romances
Menino de engenho, O moleque
Ricardo, Bangüê, Usina e Fogo morto, recebeu críticas dos que viam no futebol um
assunto vulgar para servir de matéria-prima de um romance.
O jornalista
Mário Pedrosa apresenta algumas razões sobre a ausência de romancistas lidos e famosos que deixaram de
espelhar em suas páginas o mundo do futebol. O preconceito da sociedade em relação à popularização do
esporte, que se desgarrou das origens e passou a ser praticado pelas camadas
baixas da população. As raízes da intelectualidade brasileira, mais distante de
nossa realidade, interessada no ouropel
alheio, que lhe fornecia os recursos de uma cultura européia , e não em nossas coisas, forjadas na prata de
casa na busca de uma identidade nossa. A falta de mercado, já que a maioria
da população formada no assunto é
analfabeta. Junte-se a isso seu desábito de leitura e seu poder aquisitivo,
que é baixo para adquirir o livro. Por incrível que pareça, para muitos editores
o jogo de futebol é para acontecer no gramado com suas emoções, não pode ser
retratado com palavras, daí afirmarem
que livro de ficção sobre futebol não
vende.
A situação modificou-se, o contexto
do futebol agora é outro sob vários aspectos. O assunto evoluiu com a sua
problemática, mas a lacuna e o desafio para que os escritores brasileiros produzam marcantes
romances de futebol permanecem. Centrados no futebol, mas romances que apontem
para várias direções, reflitam um tempo sem definições, necessitando de
comunhão, inclusão e entendimento. Quando for preenchida a lacuna, o desafio
colocado pela lateral do campo e trilar o apito da vitória, certamente a crítica e o leitor vão
aplaudir. A literatura brasileira vai sorrir de contente com esse gol de
placa.
*Membro do PEN CLUB e de várias academias, com grande parte da obra premiada, traduzida em outros idiomas e publicada em vários países.
*Membro do PEN CLUB e de várias academias, com grande parte da obra premiada, traduzida em outros idiomas e publicada em vários países.
Fonte:http://www.cyrodemattos.com.br