Lendas e contos de fadas

Sônia Carvalho de Almeida Maron*


         Minha infância foi embalada pela leitura dos contos dos Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mal consegui esperar o domínio das primeiras letras para ler as histórias de príncipes e princesas, bruxas e anões, dragões voadores, abóboras que se transformavam em carruagem e ratos que ao toque da varinha mágica da fada madrinha viravam cavalos brancos como a neve, garbosos e ligeiros. O meu mundo encantado era bem diferente daquele que povoa os sonhos dos meus netos. Eles, crianças do terceiro milênio, dormem e acordam tendo o  facebook e o WhatsApp como canção de ninar.

         A leitura era o caminho dos sonhos, percorrido pelas crianças da minha geração, gravando cada história e a mensagem transmitida. Li e reli A bela adormecida e A gata borralheira, de Jacob e Wilhelm Grimm; de Hans Christian Andersen, O patinho feio, João e Maria, A roupa nova do rei, entre incontáveis títulos da literatura infantil. Conservei especial predileção pela coletânea de contos árabes que chegou aos nossos dias conhecida como “As mil e uma noites”, preservada pela tradição oral da Pérsia e da India. Entre as narrativas destaco a história de Sherazade,  enganando o sultão que matava todas as esposas à noite. A linda princesa usou o recurso dos relatos fascinantes, contados em episódios intermináveis ao poderoso serial killer, ilustrados por personagens interessantes como o sagaz  Ali Babá que ficou com o tesouro dos quarenta ladrões, ajudado pela fiel empregada de nome Morgana e viveram todos  felizes para sempre.

Dir-se-ia, sem medo de errar, que o final da famosa historinha é politicamente correto. Afinal, segundo a máxima que a sabedoria popular consagrou, “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”... Além disso, as  artimanhas e a ambição desenfreada de Ali Babá  estimulou as sugestões da criada e  jogou os ladrões uns contra os outros, dizimando-os. O plano sinistro  resultou na propriedade e posse de toda a fortuna que os ladrões guardavam na gruta e eliminou todos aqueles que poderiam servir de obstáculo à prática  do crime perfeito. A conclusão é que Ali Babá e sua fiel criada estavam acima do bem e do mal.

Apesar do encantamento que produziram, todos sabem que as lendas e contos de fadas não podem ser transportados para a realidade social. Os fatos reais não se ajustam às ficções criadas para divertir e alimentar a criatividade infantil. Além do mais, até mesmo nossas crianças – tomo como exemplo meus netos – não gostam de ser ludibriadas. Por oportuno, presto sincera  homenagem à minha neta Beatriz que aos sete anos tem a noção do justo e injusto; Bia, como é conhecida, já sugeriu diversas vezes que o salário das minhas colaboradoras Dora e Lene sofra descontos quando chegam atrasadas e decide com voz firme: “Não é justo! Dinheiro é prá quem trabalha.” Crianças com o discernimento de Bia não acreditam em sapo que se transforma em príncipe, bruxa que vira princesa, fadas portadoras de varinha de condão que andam por aí a transformar trapos em vestido de baile, abóbora em carruagem e ratos em lindos cavalos brancos.

Em verdade, os responsáveis pelo equilíbrio e transparência dos gastos públicos desprezam as contas dos órgãos que sabem fazer contas e que são chamados de “tribunais”. Na contramão do bom senso, da ética, da dignidade e do decoro, nossos legisladores votam fantasias apelidadas “projetos de lei” e decidem que receita e despesa são ficções incômodas e devem ser manipuladas ao sabor dos interesses de quem fornecer uma propina razoável.

E por aí vai seguindo o Brasil no reino da fantasia e das lendas, uma delas informando que no Brasil não existe a pobreza graças à ação governamental que ganhou para os doze trabalhos de Hércules. A verdade politicamente correta transformou os “sem teto” em classe média; os “sem terra”,  categoria reconhecida como pessoas acima do bem e do mal, apesar da inexistência de novos assentamentos nada reclamam diante da permissão de impunidade, dividindo proezas e privilégios com os índios de Buerarema.

 A esta altura, tudo leva a crer que metade do país participa do desmonte moral das instituições, desconhece a definição legal da coautoria,  da teoria do domínio do fato,  repudia indícios e até mesmo a prova material dos crimes praticados no exercício de cargos públicos, agora alcançando a “jóia da coroa”. Os que se dizem representantes do povo, como legisladores, estão de plantão para votar leis e mais leis destinadas a limitar a ação do Ministério Público,  da Polícia Federal e dos Tribunais de Contas, transformando um ato disciplinador de condutas em instrumento espúrio, verdadeira varinha mágica cujo toque transforma crimes em atos abençoados e legais.

Na desmoralizada empresa Petróleo Brasileiro S/A tudo está muito feio ou apresentando visão estranha, distorcida e deslocada, um verdadeiro circo de horrores. Basta ter olhos para ver ética e esteticamente. Resta apenas ao “Brasil de todos nós” a releitura do conto de Christian Andersen A roupa nova do rei.  Quem sabe aparece alguém, com a inocência de uma criança, para revelar a única verdade:  o rei pensa que está vestindo uma deslumbrante roupa nova, tecida com fios de ouro e está inteiramente nu. 

Dizem que o verdadeiro cego  não é aquele que efetivamente não enxerga e sim o que prefere  não enxergar. Na historinha brasileira cegos são os ingênuos e omissos ou aqueles que devem ficar calados aguardando a sobra do butim.