Kleber
Torres
O
lançamento do livro O Canto Contido, 22 anos após a morte de Valdelice
Pinheiro, numa edição limitada patrocinada pela Academia de Letras de Itabuna
(Alita) e coordenada pelo escritor Cyro de Mattos, não apenas resgata os
trabalhos publicados em vida pela autora, que nos legou os livros De Dentro de
Mim e Pacto, como também outros 16 poemas esparsos publicados em jornais e
revistas, bem como gravados num CD. O livro também nos permite uma revisão
critica da poeta, que foi professora da Faculdade de Filosofia da atual
Universidade Estadual de Santa Cruz e que era considerada pelo imortal Adonias
Filho, da Academia Brasileira de Letras, como “uma poeta já identificada com a
melhor poesia brasileira”.
Em seu
ensaio, Adonias Filho, considera que com o livro Pacto, Valdelice Pinheiro
aparece como uma poeta maior, e a coloca no mesmo patamar de autores como
Carlos Nejar, de Telmo Padilha – que conquistou um Prêmio Nacional de
Literatura-, de Miriam Fraga e João Carlos Teixeira Gomes, que surgiram em
plena fase clássica do modernismo.
Ele
considera o livro como resultado e um exemplo da sua poesia salientando que
“não importa a variação no tema ou na forma –e por vezes a contenção é tamanha
que se evoca o haikai, mas na composição do verso e no artesanato modelar, o
que realmente se afirma é a excepcional preocupação com a condição
humana”.
Cyro
de Mattos nos lembra que na antologia do crítico Assis Brasil que fez um mapeamento
da poesia brasileira, indicou entre os autores baianos Telmo Padilha, Valdelice
Pinheiro, destacando a sua linguagem despojada e com um texto fluindo como uma
mundivisão focada na preocupação com a condição humana. A relação incluía ainda
os nomes de Walker Luna, Carlos Roberto Santos Araújo e Firmino Rocha.
Como
crítico, ele destaca ainda que “a poesia de Valdelice Soares Pinheiro não
precisa de abonos para ser reconhecida, tem em si mesma o seu valor intrínseco,
no qual se mostra com equilíbrio e expressividade”. Ele lembra que ela
publicou em vida apenas dois pequenos livros, numa edição particular e
limitada, por isso mesmo corria o risco de ser mais um dos poetas de província
cuja tendência poderia ser a de se perpetuar no anonimato.
O
critico e coordenador da reedição das obras da poeta itabunense salienta como
suas características a linguagem despojada, e um discurso sintético que recorre
ao verso breve: “Seu canto contido propõe que a imagem do mundo seja alimentada
com amor, esperança, leituras apropriadas de uma flor cósmica geradas pela mão
do eterno para ser poeira e vento”.
Mostra
ainda que a professora de Estética e Ontologia da Universidade Estadual de
Santa Cruz, deixou um rico legado poético, além de anotações pessoais e 63
poemas que foram publicados postumamente pela Editus, com um amplo estudo
critico em A Expressão Poética de Valdelice Pinheiro, reunindo estudos
acadêmicos num trabalho coordenado pela doutora Maria de Lourdes Netto
Simões.
Para
Hélio Nunes, que organizou a edição De Dentro de Mim, em 1961, o livro foi
escrito “com muita ternura do mundo, dos homens e das coisas. É uma mensagem
humanista. A autora nos transmite com lirismo tranquilo a luta intima que
alguns poetas travam frente à realidade agressiva do meio social”.
Ele
considera Valdelice Pinheiro como uma artista sintonizada com o seu tempo e que
sentia as angústia da geração do pós-guerra e que conviveu ao mesmo tempo com a
guerra fria e as suas dimensões escatológicas. “Desta geração que não aceita a
hecatombe, nem tampouco se conforma com a eternidade do sofrimento dos homens”,
concluindo que De Dentro de Mim é um livro para ser lido e compreendido.
Telmo
Padilha, destacou na sua apresentação de Pacto, em 1977, que Valdelice Pinheiro
estava dialeticamente colocada no epicentro das questões do seu tempo e
apresenta no seu segundo livro, uma poesia enxuta, em que o discurso e visível
e perceptível através de indagações lançadas, mas ainda não respondidas,”sobre
o imenso vazio, o vazio do homem contemporâneo”, um dos sintomas e
consequências das pós modernidade num universo liquido e de relações
impessoais.
Para
ele, a autora trabalha seus poemas como se quisesse retirar deles todo o
supérfluo. “Não existe a palavra que enfeita, mas a palavra exata, única, a
fotografar o fato. O ritmo é às vezes arbitrário e verdadeiro e a metáfora
compõe um léxico de profundidade, no qual as relações semânticas mantém estrita
fidelidade com o texto”.
Padilha
conclui que sem ser uma formalista, Valdelice Pinheiro conseguiu alcançar um
nível de elaboração de texto e poética que a coloca ao lado dos melhores
vanguardistas não ortodoxos da sua geração, num livro construído segundo
um plano de dialética e reflexão.
Em sua
essência, a artista se revela uma minimalista, integrante daquele grupo de
artistas para quem o mínimo está em lugar do máximo, tornando a palavra no seu
excesso supérflua e desnecessária. Em Medo, ela nos fala de um olho enorme e
paranóico sobre o mundo “espiando a hora de chorar”.
Ao
falar do meio ambiente, em Rio Cachoeira, vê “um rio torto, rio magro, rio
triste”, que assume uma dimensão humana e chora, sente dor e fala do lamento
dos afogados que engoliu. No poema Triste, constrói com gosto e a
cor branca do sal os versos para todos os mortos, mas que ao mesmo tempo falem
de todos os vivos, os quais inutilmente também vão morrer na sua finitude.
Como
humanista, Valdelice Pinheiro dedica um poema para um poeta bêbado, que fazia
versos para uma mulher que se foi e nunca voltou, mas o qual deveras existiu.
Em Instante conclui com dois versos suaves e sublimes sobre uma saudade enorme
e que desmancha a solidão.
A
economia de palavras se manifesta em poemas como História, Cristo – esse
outro (prego na mão,/ os olhos iluminando/ a solda elétrica.) – ou ainda em
Comunhão, Batismo em que se compromete em abrir o sorriso para uma nova
primavera e em África, que foi esquartejada e explorada pelos
colonialistas num grande roubo e numa grande apropriação indébita de terras e
pessoas.
Se é
parciminiosa e contida na maioria dos poemas, Valdelice Pinheiro também assume
o engajamento social e político em no Testamento, em que deixa seu legado para
o mundo ou em Maria da Vida, dedicado a uma Maria perdida, doída, caída
da vida e por quem ela chora, um conjunto de poemas que culmina em Pacto ou
Como São Francisco, onde propõe:
“Poeta,
vamos fazer um pacto?
Vamos
praticar o gesto que traduz o poema.
que
tira o poema da palavra
e o
coloca no ato, e o faz na pedra,
ou faz
da palavra o gesto e o ato?”