Sônia Carvalho de Almeida Maron*
Sem desmerecer
os amigos conquistados depois de adultos, quando a maturidade começa a imprimir
um caráter seletivo às relações afetivas, nossos amigos de infância são
especiais. Aquela amiga que caminhou ao nosso lado para o colégio, dividiu o
lanche, posou para retratos em preto e branco na máquina fotográfica Kodak, cantou de mãos dadas as cantigas
de roda é única, como únicos são os momentos vividos e divididos nas
confidências referentes ao primeiro namorado, à primeira festa, à dor do primeiro
amor desfeito. O sentimento puro e incondicional à prova de desentendimentos,
inveja ou disputas, marcou minhas amizades de infância e alcançou os cabelos
brancos e as rugas, continuando igual em intensidade até o momento das lágrimas
da despedida supostamente final.
Talvez a
dúvida quanto à despedida imposta pela morte – se é final ou temporária – seja
um meio de defesa eficaz para o sofrimento da perda. A verdade é que o lenço
enxuga a lágrima que teima em cair, o tempo mitiga a dor, mas o vazio permanece
quando um amigo de ontem, de hoje e de sempre se vai. Sei que vou conviver,
cada vez mais, com espaços vazios em minha vida à medida que os anos avançam e
vão levando os entes queridos, mas não consigo evitar a dor de mais uma
despedida.
Surgiu um novo vazio
em minha vida, símbolo do melhor que a colônia libanesa emprestou ao
sul da Bahia definindo o perfil diferenciado e único da nossa região. As
famílias libanesas que povoaram a terra grapiúna, integrando-se e amando nosso
chão como seu próprio Líbano, conhecidas pelos apelidos de família Hage,
Midlej, Maron, Haun, Atallah, Rihan, Habib, Kalid e tantos outros, deixaram
marca indelével nos costumes, na culinária, nas práticas comerciais, nos
exemplos de generosidade, retidão de caráter e coragem de verdadeiros
desbravadores da região do cacau, sem falar na beleza das mulheres. É preciso
registrar, como representante de tantos conterrâneos, a amiga querida que se
despediu: Abla Atallah Haun.
A garota
loura, alta, com jeito de candidata a títulos de beleza - tão prestigiados
naquela época - tinha traços de Lady Diana e temperamento sereno e dócil;
discreta, Abla pertencia ao grupo das adolescentes
que estavam sempre juntas: Najla e Mary Kalid, Rosa Rihan, Marilene Dantas e
eu. Todas, à exceção de Rosa, residiam na rua Ruy Barbosa. Éramos as meninas do Ginásio Divina
Providência, o que contribuía para estreitar os laços de amizade e os
interesses comuns.
Abla tinha o perfil de “boa moça”e não somente na aparência:
não recordo uma atitude sua na convivência social ou na intimidade das amigas
que merecesse censura ou crítica. Até mesmo meu pai, intolerante e fiscalizador
incansável das minhas amizades, tinha uma afeição especial pela filha de “seu”
José Atallah e Dona Pequinita, julgada por ele a mais “ajuizada” do grupo. O que meu pai não
sabia é que a amizade dos adolescentes do século passado era “pra valer”;
justamente na casa de Abla, quando aumentava a vigilância do meu pai,
aconteciam os encontros com meu primeiro namorado, sob a proteção da “amiga de
fé” que escondia o casal na sala de visitas por achar injusta a oposição
ferrenha ao namoro porque o rapaz, “mauricinho” e de boa família, era
capoeirista famoso na academia de Mestre Bimba, em Salvador, onde estudava.
Segundo meu pai, capoeira era “coisa de bandido ou quilombola”. Imagine se o
coroa ranzinza soubesse, na outra dimensão onde se encontra, que a
capoeira virou patrimônio da humanidade !
Minha amiga Abla Atallah Haun representará sempre o melhor da fase dourada
da minha adolescência. Nossos caminhos diferentes não foram obstáculo para a continuidade
da afeição, renovada a cada reencontro. Sem a certeza de encontrá-la em
Olivença, no próximo verão, minha vida fica mais triste.