"Crônica do Rio" e poema "Agonia do Rio"




Crônica do Rio

Cyro de Mattos

E dizer que esse rio já forneceu água de suas fontes puríssimas para que todos matassem a sede no bebedouro da vida. Isso foi há muito tempo, a cidade tinha uma população pequena. Talvez nem chegasse a vinte mil habitantes. Ainda não havia sido instalado o sistema de abastecimento de água encanada para servir à população. O aguadeiro trazia a água do rio nos carotes, pequenos barris feitos com madeira de putumuju, que eram carregados pelos jumentos. Cada jumento carregava quatro carotes, dois de cada lado, pendurados na cangalha. O homem anunciava na rua: “Água do Mutucugê! Água boa do Mutucugê! Água fresca do Mutucugê! Quem vai querer?”
Muita gente vivia graças à  bondade do rio. Lavadeiras, aguadeiros, pescadores e tiradores de areia, usada nas construções residenciais,  armazéns e lojas.  Uma gente das camadas pobres da cidade tirava o sustento da família com o que o rio lhe fornecia, de janeiro a janeiro. O rio era  tido como o  pai dos pobres.
Tinha muito peixe miúdo  no raso, piaba, moreia, jundiá e beré. Muito peixe graúdo no fundo, robalo, pratibu, traíra,  piau e bagre. E outros pescados: pitu, camarão e acari. Pela manhã, o pescador passava com as fieiras de peixe, batia na porta e oferecia os pescados à dona da casa. “Peixe fresco do Rio Cachoeira!” Na semana, de casa em casa, a cena se repetia. Na feira, aos sábados, o litro cheio de camarões era vendido por um preço barato na banca de peixe do pescador mais velho do rio.  
Certamente o rio era uma canção de noite e dia. De uns tempos para cá foi forçado a esconder a face clara de antigamente nas camadas obscuras de hoje. Transpira e geme cheio de baronesas porque não consegue se libertar do impiedoso fardo de detritos, que os humanos diariamente  despejam e travam a sua descida nas águas.
Esse é o preço que o velho rio paga por ter a cidade crescida sem controle, chegando hoje a mais de 250 mil habitantes, comentam os moradores. Afoga-se na agonia pelo descaso dos que se submetem à paisagem de cores insensatas formada por bocas enormes dos esgotos, que despejam nas águas  sem parar o que não presta. Cachoeira é o nome de um rio que chora água: anoitece e amanhece sem que nada seja feito para que seja liberado de seu  pesadelo ou pelo menos amenizado nessa agonia,  que  não faz qualquer sentido, de tão absurda.                           
Quando a cidade era pequena, latejava nas veias a vontade visível de como ela  queria crescer através do trabalho de seu povo. Movia-se com a riqueza de poucos abastados e o esforço da maioria pobre, mas sem miséria.  Havia  pouco movimento de carro na rua, os primeiros sobrados começavam a ser erguidos no local onde moravam as famílias ricas. Entrava e saía  verão, chovia  no dorso do rio. A cidade esbanjava ardor com seu povo trabalhador e progressista debaixo dos azuis do céu e por entre os verdes que gramavam os barrancos do rio.
Podia haver dia melhor para tomar banho com os amigos nas águas do Poço da Pedra do Gelo? O rosto agitado, os gritos rasgando fendas no silêncio da natureza. Era quando eu mais sorria,  vestido de sonho no reino da infância.  Evidente que isso só podia acontecer quando o rio, pleno de frescores  e purezas, tinha peixe em abundância.[1]




                      
 Agonia do Rio

Cyro de Mattos        
          
 Eu não me canso de dizer que estou morrendo.
Gente, já não somos amigos de mãos dadas?
Tenho sede, tenho fome, tenho de tudo
Saudade. Do tempo em que generosas ondas

Participavam das estações temperadas
Com sol e chuva. De peixes que dei pra tantas
Bocas, água, areia de minhas moradas,
Da lua que me banhava com sua prata.

Na triste descida, que dia e noite faço,
Em viscosas mágoas, pesadas de vômitos
Que me jogam, nesse volume de detritos

Contaminando-me a todo instante, no verso
Que me afoga, lembro, sem saber pra onde vou,
Manhãs e tardes naquelas vagas do amor.