Negrinha Benedita

 Cyro de Mattos

 


Por causa

dum frasco

de cheiro

apanhou

de chibata.

Os outros

assombrados

não puderam

fazer nada.

 

Sem andar

dias ficava.

Quando sarou,

falou ao vento

que ia embora.

Pelo mato

foi voando,

escapou

da cachorrada.

Teve sede,

teve fome,

levou espinho

pela cara.

 

Para trás

não olhava.

Com uma

espada afiada

que lhe deu

uma mão oculta

um dia viu

no quilombo

que ali era

a sua morada.

 

Aconteceu

que depois

a cabeça

da sinhá

amanheceu

decepada.

Ninguém viu

como se deu

na escuridão

daquela noite

a revanche

assim marcada.

Por causa

dum frasco

de cheiro

que ela pegou

pra ser cheirada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ELEIÇÃO

 


Do livro O Menino Camelô, editora Atual, SP, Grande Prêmio da Crítica
, Associação Paulista dos Críticos de Artes, 1991, O Melhor Livro do Ano.

Poemas de la brasileña Valdelice Soares Pinheiro, traducidos al castellano

 



Con especial gozo he traducido estos poemas de la brasileña Valdelice Soares Pinheiro (1929-1993), nacida y fallecida en Itabuna, Estado de Bahía. En vida ella publicó solo dos poemarios: ‘De dentro de mim’ (1961) y ‘Pacto’ (1977), además de algunos poemas en publicaciones dispersas.En 2014 apareció ‘Canto contido’, donde el poeta y narrador Cyro de Mattos reunió los dos libros y los textos dispersos de Valdelice. De esta edición elegí estos textos que vestí al castellano.

BAUTISMO

Yo te prometo, hermano,

un bautismo cristiano.

Haré tu inmersión

en las mismas aguas mías,

dentro de las mismas oportunidades.

Sin caridad,

por obligación,

te envolveré en la flor del trigo azul,

perfumaré tu cuerpo

en la realidad del pan

y te untaré de leche y miel.

Abriré tu sonrisa

en una nueva Primavera.

 

CREACIÓN

Dios besó a las abejas

y a las cerezas

y dibujó los divinos dientes

en la pulpa de una guayaba.

Después

encargó a los niños

y a los pajaritos

el sabor de la vida.




POEMA PARA LA NAVIDAD

En medio de todas las alegrías

por el Niño Dios nacido,

tanta sangre

por los niños que no nacen.

En medio de todos los perfumes y hosannas,

tanto grito, tanto olor de dolor

en la boca de los niños con hambre.

En medio de toda la paz

de aquella estrella,

tanta inquietud

en los ojos de mis hermanos,

tanto odio

en las manos de los generales.

 

Niño Jesús,

cruz y redención,

abre de nuevo tu cuerpo

sobre nosotros.

 

PAZ

Plántense los sueños

en la alborada de los dedos.

Coséchense las espigas

en la mañana de las manos.

Y, en el descanso de la noche,

la mesa puesta,

nazca el amor

en el calor del pan.

 

SI YO TE DIGO ADIÓS

Yo abriré mis ojos

llenos de lágrimas

sí, un día,

a la orilla de cualquier camino,

yo te digo adiós.






Publicado em: https://salamancartvaldia.es/not/262439/poemas-brasilena-valdelice-soares-pinheiro-traducidos-castellano/

Prêmio Nacional de Romance Pen Clube do Brasil

Com o livro Os Ventos Gemedores Cyro de Mattos conquistou o Prêmio Nacional de Romance Pen Clube do Brasil, um dos mais tradicionais da literatura brasileira, que já agraciou autores como Gilberto Freire, Érico veríssimo,  Autran Dourado, Nélida Piñon, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e Carlos drummond de Andrade, entre outros.




Lançamento da terceira edição da Revista Guriatã.












 

Clave da Solidão em Fernando Pessoa*

 


                         Cyro de Mattos

 

Fernando Pessoa é um poeta de grave meditação.  Sua poesia possui acuradas interpelações, o pensamento argumentativo refere-se ao que somos, fomos e imaginamos ser no futuro. De sua voz escorre a angústia, o delírio do sonho e o milagre que a poesia rara externa quando cumpre saber o mistério que nos cerca na existência. Poeta essencial do pensamento, dotou a Europa de poderosa razão no poema, com a   carga de uma lírica das mais importantes no século vinte. Visões nos versos que se fixam na vertigem das solidões imaginárias são produzidas através de raciocínios inteligentes. Convergem perplexidades no discurso que se estende para solidões do fim do mundo em cada um de nós, seus versos são como mãos que nos tocam no enleio de respostas para as mesmas incógnitas.

Pessoa escreve versos com magistral domínio da rima e da métrica. Muito de seu espantoso fazer poético é visto como resultado de vivências de estados imaginários. Nas intenções que empreende para alcançar o sonho, conhecimento de que na vida tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo, tenta decifrar as formas invisíveis. O poeta de personalidade complexa chega a conclusões que reduzem as visões da existência ao nível de ideias altas. Sentimentos tornam-se sedimentados em conceitos merecedores de uma leitura que não se compraz com o deleite para a mística do ornamento. Ressoam no discurso feito com a tristeza de coisas reais, sob o convívio de vagos receios e fortes anseios.

Há uma conexão de ricas construções poéticas com vibrantes razões e saídas de uma loucura lúcida servindo de análise da existência. Um vínculo de gravidade e grandeza no que ele sabe dizer sobre o enigma do mundo com os outros, nas partes em que alcança com sua criativa marca pessoal, apoiada em imagística superior, pungentes visões oblíquas. Às vezes seus versos iluminam o ser com uma música finda que fere, mas que continua acordada no contínuo movimento da vida. Essa música que emana do sonho é para Pessoa a vida em si e contra si mesma, intensa do sim e do não.

O poeta conhece depressões, passeia por ínvios caminhos, vê as coisas se transformarem ou permanecerem duradouras, sem perdas, em cada estar no mundo. Sabe que nesta independência é que repercute com a sua voz neutra o enigma de tudo. Vozes contrárias existem no que o poeta tenta escutar, tornadas alheias aos que vivem e morrem na vida breve. Há momentos críticos, e são inúmeros, em que o poeta se perde por entre os caminhos do tempo ido. Nesta tristeza que numa ordem absoluta faz o céu sem luz e não cura a alma de seus males profundos. Roça no poeta a verdade de que lhe é impossível decifrar as formas sem formas, “essas coisas lindas que nunca existirão...”

 

                  No rio ao pé de salgueiros

 Passaram as águas em vão,

Com tristezas de estrangeiros

Passaram pelos salgueiros

As ondas, sem ter razão.

 

                    Na alquimia própria do poeta eterno, que detém o tempo, a inaugurar novos sentidos, seus versos transformam sentimentos em pensamentos cristalizados. Plasmam tudo que vê e sente na decorrência de quem reconhece a terra e o céu na beleza de ser em si, mas que não dependem de quem durante a vida “perdeu a alma p’ra os ter.” No céu amplo de desejo, o homem retraído, preso à solidão de tudo, faz de Pessoa um poeta de penetrante enfrentamento elucidativo do ser. Ele nos diz que é amante da beleza, embora reconheça que tudo é em vão. Mostra ter saudade do poeta da alma alheada, que ficou para trás em dado momento, escrevendo os versos que chegavam sem lhe exigir nada. Em contrapartida, o seu ser profundo é tomado de confusão absurda quando começa a saber que a terra é feita de céu.  Aparece dentro dele como se fosse de outra vida, dizendo-lhe que a morte chega cedo nessa substância oculta, que não se desvenda. Breve é toda a vida, confessa. Como numa espécie de andaime, que lhe é posto pelo eu poético, seus versos ecoam da vida breve por entre grandes mistérios, assombrosos abismos. 

               As ondas atormentadas do mundo habitam as zonas da imaginação alimentadas pela razão de viver desse poeta incrível.

 

          O que me dói não é

          O que há no coração

          Mas essas coisas lindas

          Que nunca existirão...

 

                Neste mundo, que ele não sabe se é sonho, realidade, onde tudo é deixado, só temos a certeza única de que passamos como sombras do que fomos. Conflitos que na alma geram a terra e o céu, por onde passam as mesmas sombras, não deixam que o poeta mude o hábito de escrever versos fingidos como vínculo de interiores graves diante do mundo, os quais quase sempre trazem essas coisas vestindo nadas.

               A lembrança do passado dá ao poeta a consciência de que só teve a vida mentida, feita de mágoas que não cessam, no rio que flui sem volta, e trégua. Rio subterrâneo, que relacionado com outros símbolos o poeta não sabe de quais terras vem e para onde vai. A vida vivida incerta, na esperança que pouco alcança, não apreende o tédio dessa substância oculta. Em tudo isso consiste a energia que alimenta o poeta na construção de seus versos, suas verdades e dúvidas, cheias de argumentos dotados de questões sérias.

                A vida, por ser complicada, faz com que Pessoa tenha olhos para ver por meio da razão, que lhe deram como guia. Se a razão é guia que ilumina a obstinada fé e a ciência cega, reflete-se de seus versos uma voz brilhante numa espécie de loucura lúcida. É pouco chamar de talentosa essa maneira de se comportar o eu poético, pois sem dúvida é formada de altíssimo pensamento de horas fundas, profundas, singularíssimas, solitárias, mas a um só tempo plurissignificativas como aferição da existência. Diferentes no poeta que tem olhos para ver, separar, distinguir, juntar, compelido para que tente decifrar a existência no exterior em que ele se vê perdido como num deserto. Passageiro confuso, vê a noite vinda como nada, a vida como sonho. Na clave da solidão, para alcançar as sombras sem formas, Pessoa urde o artifício do caminho, e é também como ele esquece um pouco dele mesmo.

               Para além de conhecer esta vida breve, fingidos os seus versos soam neste cancioneiro por onde as coisas escoam com o seu ritmo para coisa nenhuma. A alma do poeta remoinha nas portas do enigma, a vontade deseja penetrar muros. Isso o força a reviver, ler o que está em si e diante de si, exprimir em silêncio e com intensidade o tempo que teve sonhado e o perdeu nos anos.

               Ter alguma certeza nas coisas desta vida, nessa loucura do querer compreender, o poeta acha ser difícil, há uma solidão imensa em tudo. E ele só acredita que se sente assim quem na existência caminha enganado.

 

                          Se ver é enganar-me,

   Pensar um descaminho,

   Não sei. Deus quis dar-me

  Por verdade e caminho.

 

            Evocação do homem através do verbo mágico, discurso instigante em usual pensamento do real vestido de sonho, dotado de arguta argumentação da inteligência, tudo mais Fernando Pessoa revela no seu Cancioneiro (Obra poética, Brasil, 1960).  Mostra o quanto experimenta sua natureza de poeta eterno, diferente e sozinho, no exercício da literatura de excepcional qualidade. Emissário da vida a morrer e a iludir, transmite, como uma fonte que não cessa, o quanto ausculta através da imaginação, questiona por meio dos abismos da razão. Como um ser solitário, que a certa altura vê no outro “um cadáver ambulante que procria.”

Sentir esse poeta genial, que à vida dá assomos e esgares, sinta quem lê o seu célebre poema “Autopsicografia”:

 

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

*In “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, no prelo da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

            PESSOA, Fernando.  Obra poética, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960.

A Saga Marinha de Fernando Pessoa*

 

                                                                                            Cyro de Mattos

A saga portuguesa de expansão marítima é contada em versos por Fernando Pessoa no único livro que publicou em vida: Mensagem (1934).  Foi escrito entre os anos de 1920 e 1930, em forma de uma epopeia fragmentada, composta de quarenta e quatro poemas. Fernando Pessoa expressa neste livro o elogio de grandes vultos históricos, refere-se à vontade de Portugal de querer lutar contra as adversidades, ultrapassar os abismos que Deus ao mar deu.

 

            O sonho de ver as formas invisíveis

 Da distância imprecisa, e, com sensíveis

 Movimentos da esprança e da vontade,

 Buscar nas linhas do horizonte

                    A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -

                    Os beijos merecidos da verdade.

 

.      Nesses versos é visto o sentimento nostálgico mesclado de grandeza, enquanto em outros ocorre o apelo de além: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.”

       Mensagem divide-se em três partes: Brasão, Mar Português e o Encoberto. A primeira possui várias vozes, que se integram para celebrar a história de Portugal e enaltecer os seus fundadores. Estrutura-se como o brasão português, constituído por dois campos, um apresentado por sete castelos, já o outro formado por cinco quinas.  A coroa e o timbre estão no topo do brasão, a se apresentar com o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de águia.

       Com essa divisão, tendo o brasão como referência, os poemas versam sobre os grandes personagens históricos, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalense, passando por sua esposa Dona Tareja e seu filho Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, até o infante Dom Henrique (1934-1460), fundador da Escola de Sagres, grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e ainda aludem a Alfonso de Albuquerque (1462-1515), dominador luso do Oriente. Na galeria dos grandes personagens, os versos dispostos em uma partitura trinitária propõem até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois denominada Lisboa. O poeta usa o paralelo imagístico quando se refere a esse assunto:

 

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo.

        

         Em “Mar Português”, segunda parte do livro, o poeta investe contra o que fosse acaso ou vontade ou até mesmo temporal. Leia-se a propósito do assunto esse lamento cheio de dor, um dos mais pungentes da poesia portuguesa sobre o ciclo das descobertas marítimas:

 

                   Ó mar salgado, quanto de teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram.

Quantos filhos em vão rezaram.

Quantas noivas ficaram sem casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

      Depois de se perguntar se a jornada de natureza épica valeu a pena, o poeta em versos de saber eterno, que correm o mundo, levados através da linguagem coletiva, em nível de fala, responde que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.            

      Seu pensamento reflexivo acrescenta:

 

                   Quem quer passar além do Bojador

                   Tem que passar além da dor.

        

         Em “O Encoberto”, terceira parte de Mensagem, vemos o mito sebastianista do retorno de Portugal às épocas de glória. Alude o poeta agora ao misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal, que teve a frota dizimada em ataque aos mouros, em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, formulam nesse trâmite espiritual o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal. Anunciam a nova terra e os novos céus, quando então fica criado o Quinto Império, que marca em definitivo a supremacia de Portugal sobre o mundo.

         O sentimento nacionalista permeia os poemas de Mensagem. Uma estrofação com base no elogio aflora da alma gentil do poeta, os versos ressoam uníssonos para ferir objetivos universalistas, como facilmente podem ser detectados nesse padrão de técnica literária. Classificada pela crítica como ode trinitária, nessa obra o poeta propõe sua mensagem com o cerne da nobreza, formula uma antítese na posse do mar, que antes existia com seus medos, mistérios e assombros, incide numa síntese através da futura civilização, com apetências e aderências por mares nunca antes navegados, de tal modo também nos informou Camões, representadas dessa vez na voz da terra que ansiou o mar.

         O eu poético em Mensagem prevê que o futuro da Europa está além-mar, o agente dessas descobertas marítimas será Portugal. O poeta imagina a Europa com um corpo de mulher. Estendida, ela tinha um de seus cotovelos, o direito, fincado na Inglaterra; o outro, esquerdo, recuado, na península italiana; cabendo a Portugal ser o rosto.  Pode não ter sido o rosto, mas a posição geográfica de Portugal, pequena faixa de terra voltada para a imensidão do Oceano, à sua frente, que condicionou seu destino ultramarino durante quase cinco séculos.

 

*In “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, no prelo da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

PESSOA, Fernando.  Obra poética, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960.

SIMÕES, Maria de Lourdes Netto (org.). Navegar é preciso, coletânea, Editus/UESC, Bahia, 1999.