Cyro de Mattos
Fernando Pessoa é um poeta de grave
meditação. Sua poesia possui acuradas
interpelações, o pensamento argumentativo refere-se ao que somos, fomos e
imaginamos ser no futuro. De sua voz escorre a angústia, o delírio do sonho e o
milagre que a poesia rara externa quando cumpre saber o mistério que nos cerca
na existência. Poeta essencial do pensamento, dotou a Europa de poderosa razão
no poema, com a carga de uma lírica das
mais importantes no século vinte. Visões nos versos que se fixam na vertigem
das solidões imaginárias são produzidas através de raciocínios inteligentes.
Convergem perplexidades no discurso que se estende para solidões do fim do
mundo em cada um de nós, seus versos são como mãos que nos tocam no enleio de
respostas para as mesmas incógnitas.
Pessoa escreve versos com magistral
domínio da rima e da métrica. Muito de seu espantoso fazer poético é visto como
resultado de vivências de estados imaginários. Nas intenções que empreende para
alcançar o sonho, conhecimento de que na vida tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo, tenta decifrar as
formas invisíveis. O poeta de personalidade complexa chega a conclusões que
reduzem as visões da existência ao nível de ideias altas. Sentimentos tornam-se
sedimentados em conceitos merecedores de uma leitura que não se compraz com o
deleite para a mística do ornamento. Ressoam no discurso feito com a tristeza
de coisas reais, sob o convívio de vagos receios e fortes anseios.
Há uma conexão de ricas construções
poéticas com vibrantes razões e saídas de uma loucura lúcida servindo de
análise da existência. Um vínculo de gravidade e grandeza no que ele sabe dizer
sobre o enigma do mundo com os outros, nas partes em que alcança com sua
criativa marca pessoal, apoiada em imagística superior, pungentes visões
oblíquas. Às vezes seus versos iluminam o ser com uma música finda que fere,
mas que continua acordada no contínuo movimento da vida. Essa música que emana
do sonho é para Pessoa a vida em si e contra si mesma, intensa do sim e do não.
O poeta conhece depressões, passeia por
ínvios caminhos, vê as coisas se transformarem ou permanecerem duradouras, sem
perdas, em cada estar no mundo. Sabe que nesta independência é que repercute
com a sua voz neutra o enigma de tudo. Vozes contrárias existem no que o poeta
tenta escutar, tornadas alheias aos que vivem e morrem na vida breve. Há
momentos críticos, e são inúmeros, em que o poeta se perde por entre os
caminhos do tempo ido. Nesta tristeza que numa ordem absoluta faz o céu sem luz
e não cura a alma de seus males profundos. Roça no poeta a verdade de que lhe é
impossível decifrar as formas sem formas,
“essas coisas lindas que nunca existirão...”
No rio ao pé de salgueiros
Passaram as águas em vão,
Com tristezas de estrangeiros
Passaram pelos salgueiros
As ondas, sem ter razão.
Na alquimia própria do
poeta eterno, que detém o tempo, a inaugurar novos sentidos, seus versos
transformam sentimentos em pensamentos cristalizados. Plasmam tudo que vê e
sente na decorrência de quem reconhece a terra e o céu na beleza de ser em si,
mas que não dependem de quem durante a vida “perdeu a alma p’ra os ter.” No céu
amplo de desejo, o homem retraído, preso à solidão de tudo, faz de Pessoa um
poeta de penetrante enfrentamento elucidativo do ser. Ele nos diz que é amante
da beleza, embora reconheça que tudo é em vão. Mostra ter saudade do poeta da
alma alheada, que ficou para trás em dado momento, escrevendo os versos que
chegavam sem lhe exigir nada. Em contrapartida, o seu ser profundo é tomado de
confusão absurda quando começa a saber que a terra é feita de céu. Aparece dentro dele como se fosse de outra
vida, dizendo-lhe que a morte chega cedo nessa substância oculta, que não se
desvenda. Breve é toda a vida,
confessa. Como numa espécie de andaime, que lhe é posto pelo eu poético, seus
versos ecoam da vida breve por entre grandes mistérios, assombrosos
abismos.
As ondas atormentadas do
mundo habitam as zonas da imaginação alimentadas pela razão de viver desse
poeta incrível.
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...
Neste mundo, que ele não sabe
se é sonho, realidade, onde tudo é deixado, só temos a certeza única de que
passamos como sombras do que fomos. Conflitos que na alma geram a terra e o
céu, por onde passam as mesmas sombras, não deixam que o poeta mude o hábito de
escrever versos fingidos como vínculo de interiores graves diante do mundo, os
quais quase sempre trazem essas coisas vestindo nadas.
A
lembrança do passado dá ao poeta a consciência de que só teve a vida mentida,
feita de mágoas que não cessam, no rio que flui sem volta, e trégua. Rio
subterrâneo, que relacionado com outros símbolos o poeta não sabe de quais
terras vem e para onde vai. A vida vivida incerta, na esperança que pouco
alcança, não apreende o tédio dessa substância oculta. Em tudo isso consiste a
energia que alimenta o poeta na construção de seus versos, suas verdades e
dúvidas, cheias de argumentos dotados de questões sérias.
A vida, por ser complicada,
faz com que Pessoa tenha olhos para ver por meio da razão, que lhe deram como
guia. Se a razão é guia que ilumina a obstinada fé e a ciência cega, reflete-se
de seus versos uma voz brilhante numa espécie de loucura lúcida. É pouco chamar
de talentosa essa maneira de se comportar o eu poético, pois sem dúvida é formada
de altíssimo pensamento de horas fundas, profundas, singularíssimas,
solitárias, mas a um só tempo plurissignificativas como aferição da existência.
Diferentes no poeta que tem olhos para ver, separar, distinguir, juntar,
compelido para que tente decifrar a existência no exterior em que ele se vê
perdido como num deserto. Passageiro confuso, vê a noite vinda como nada, a
vida como sonho. Na clave da solidão, para alcançar as sombras sem formas,
Pessoa urde o artifício do caminho, e é também como ele esquece um pouco dele
mesmo.
Para
além de conhecer esta vida breve, fingidos os seus versos soam neste
cancioneiro por onde as coisas escoam com o seu ritmo para coisa nenhuma. A
alma do poeta remoinha nas portas do enigma, a vontade deseja penetrar muros.
Isso o força a reviver, ler o que está em si e diante de si, exprimir em
silêncio e com intensidade o tempo que teve sonhado e o perdeu nos anos.
Ter
alguma certeza nas coisas desta vida, nessa loucura do querer compreender, o
poeta acha ser difícil, há uma solidão imensa em tudo. E ele só acredita que se
sente assim quem na existência caminha enganado.
Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus quis dar-me
Por verdade e caminho.
Evocação do homem através do verbo
mágico, discurso instigante em usual pensamento do real vestido de sonho,
dotado de arguta argumentação da inteligência, tudo mais Fernando Pessoa revela
no seu Cancioneiro (Obra poética, Brasil, 1960). Mostra o quanto experimenta sua natureza de
poeta eterno, diferente e sozinho, no exercício da literatura de excepcional
qualidade. Emissário da vida a morrer e a iludir, transmite, como uma fonte que
não cessa, o quanto ausculta através da imaginação, questiona por meio dos
abismos da razão. Como um ser solitário, que a certa altura vê no outro “um
cadáver ambulante que procria.”
Sentir esse poeta genial, que à vida dá
assomos e esgares, sinta quem lê o seu célebre poema “Autopsicografia”:
O
poeta é um fingidor.
Finge
tão completamente
Que
chega a fingir que é dor
A
dor que deveras sente.
E
os que leem o que escreve,
Na
dor lida sentem bem,
Não
as duas que ele teve,
Mas
só a que eles não têm.
E
assim nas calhas de roda
Gira,
a entreter a razão,
Esse
comboio de corda
Que
se chama coração.
*In
“Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras
Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, no prelo da EDUEM, editora da
Universidade Estadual de Maringá, Paraná.
PESSOA, Fernando. Obra
poética, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960.