Cyro de Mattos - palestra Jorge Amado FTC




 
Jorge Amado em Itabuna
                                      Cyro de Mattos
                                
Presume-se que a palavra grapiúna era no início “graaiúna”. Usada pelos índios da zona cacaueira baiana, significava uma pequena ave preta que vive à beira d’água, conhecida como “viuvinha”. Assinalada por Teodoro Sampaio, a palavra grapiúna é  constituída dos elementos IG (água), CARÁ (ave) e UNA (azul-negro). Mais tarde o elemento pê seria introduzido provavelmente  por uma questão de eufonia. Pode também a palavra grapiúna  ter origem  na expressão indígena “igarapé-una”, que significa  riacho preto, pequeno curso d”água, que era  bastante encontrado nas fazendas de cacau e matas do sul da Bahia.
       Em sua evolução semântica, a palavra grapiúna perdeu a vogal inicial e passou a significar os que nasceram ou vieram para o sul da Bahia no período do desbravamento e povoamento. Durante anos grapiúna significou  os que nascem na região   cacaueira baiana ou os que ali estão radicados e se identificam  com a maneira de ser de uma civilização com as raízes fortemente telúricas.
        Em O Menino Grapiúna, pequeno livro de memórias, Jorge Amado informa:
                     
                 Desbravador de terras, meu pai erguera sua casa mais                         além de Ferradas, povoado do jovem município de Itabuna, plantara cacau, a riqueza do mundo. Na época das grandes lutas, (pág. 12).

       Mais adiante afirma:

                   Eu nascera em agosto de 1912 naquela mesma roça de cacau, de nome Auricídia”, (pág. 14).
              
Nasceu, portanto, o grapiúna Jorge Amado em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, um povoado  do jovem município de Itabuna, que aparece com seu comércio ativo em Terras de Sem Fim como um dos domínios do coronel Horácio.
A obra do ficcionista Jorge Amado, que tem como tema  o universo do cacau, compõe-se dos seguintes romances: Cacau (1933), Terras do Sem Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, Cravo e Canela” (1958), Tocaia Grande (1984) e A Descoberta da América pelos  Turcos (1994).
Em Terras do Sem Fim, no capítulo Gestação de Cidades, em falando de Tabocas, o grapiúna Jorge Amado conta essa passagem:

Tabocas continuava um município de São Jorge dos Ilhéus, Mas já muita gente  quando escrevia cartas, não as datava mais de Tabocas e, sim, de Itabuna. E quando perguntavam  a um morador dali, que estivesse de  passeio em Ilhéus, de onde ele era, o homem respondia cheio de orgulho:
- Sou de Itabuna,  

A recriação literária da civilização do cacau na Bahia tem seqüência em Jorge Amado com o pequeno romance A Descoberta da América pelos Turcos ou de como o árabe Jamil Bichara, desbravador de florestas, de visita à cidade de Itabuna para dar abasto ao corpo, ali lhe ofereceram fortuna e casamento ou ainda os esponsais de Adma.
O Jorge Amado, neste romance publicado em 1994, volta a apresentar as marcas inconfundíveis de sua arte: fluência na escrita, facilidade de fabular e gozo pela vida. Recorre ao riso para contar a saga de sírios e libaneses no sul da Bahia quando tinha início o plantio das roças de cacau,  a construção de casas em vilarejos e pequenas cidades. Para o romancista, a Descoberta da América, como afirmavam com orgulho os que descendiam dos descobridores, ou a Conquista como diziam os que descendiam dos índios exterminados, dos negros escravizados, não acontece 411 anos após a epopéia  das caravelas de Colombo, mas no começo do século dezenove e com grande atraso. Foi protagonizada pelos turcos, que, na voz do romancista, não são turcos coisíssima nenhuma, são árabes de boa cepa. Deu-se então a Descoberta ou a Conquista quando sírios e libaneses aportaram no eldorado do cacau, vindos das montanhas do Oriente médio, em época até certo ponto recente.
Situações engraçadas predominam em A Descoberta da América  pelos Turcos, romancinho armado com desventura e premonição de felicidade em seus episódios extraídos da vida real. Passagens com humor árabe acontecem na pequena cidade de Itabuna, agora aparecendo pela primeira vez com destaque no ambiente da civilização cacaueira baiana, espaço concebido e definido como um dos filões ricos da novelística amadiana. Com o seu comercinho novo, o burburinho na estação do trem, igreja e capela. Hotel dos Lordes, cabarés, botequins, pensões de prostituta, fuxicaria na política, desmando dos jagunços armados, tropas carregadas de cacau nas ruas. A recente cidade de Itabuna como um burgo de penetração exibe-se, neste romancinho bom de riso, sem retoques e ilusionismo, Marca sua presença em um  cenário cheio  da vidinha movimentada e turbulenta.
O leitor desse livro de Jorge Amado vai conhecer situações urdidas por negócios e mistérios de cama, armadas com  ironia e trama no tecido da vida. Acompanhará o libanês Raduan Murad nas tentativas de encaminhar Adma para Jamil Bichara e Adib, um  garçom de botequim, lanzudo feito um dromedário, esperto na cobrança e no troco. Seu defeito era ser jovem para a solteirona Adma. Nesse ambiente de pioneirismo e aventura sobressai de novo o relato povoado daqueles personagens característicos de Jorge Amado, dessa vez com Jamil Bichara, Raduan Murad, Ibrahim Jafet, Adib, a sultana Sálua, a encalhada Adma  e a prostituta Glorinha Cu de Ouro.
Com estrutura simples, A Descoberta da América  pelos Turcos não representa algo de novo no  conjunto da obra amadiana, mas não deixa de ser um fato que tem sua marca, dado que foi escrito por autor perto dos 82 anos, idade em que muitos já esgotaram suas compulsões e recolheram suas habilidades usadas na arte da criação literária. 
Nos seis livros de ficção que abordam a civilização cacaueira baiana, percebe-se sem esforço que Jorge Amado é um escritor de linguagem despretensiosa em sua maneira fraternal de conceber o mundo. Fica nítido que para ele é mais importante o conteúdo,  muitas vezes interligado com humor e trama,  do que a palavra com a qual  a vida é recriada.
Intimo dos ficcionistas norte-americanos comprometidos com a realidade social  do século vinte, romancistas russos  de inspiração proletária, poetas populares, o grapiúna Jorge Amado enfatiza o regional dando vigor ao nosso nativismo, no sentido de que como ato de amor plantado na terra recria a vida,  integra nossa gente,  costumes, alma  e história  na cultura nacional. Em sua arte literária que se apresenta na escrita de modo acessível ao leitor de percepção comum nascem juntos o escritor  que narra  o que viu, viveu, testemunhou e o romancista  que imaginou, sonhou, desejou a vida nem sempre como ela é. Se a narração desenvolve-se através dos fatos objetivos acontecidos no plano exterior, o conteúdo subjetivo também resulta da alma lírica arrebatada por sentimentos verdadeiros, valores essenciais transmitidos com humanidade pela palavra solidária, que pertence ao seu tempo. 
Assim é este romancista com sua mensagem de liberdade e esperança na escrita irreverente, fascinante, sensual, que faz pensar e, a um só tempo, rir. Ele nasceu numa fazenda de cacau, no sul da Bahia, para se tornar um dos mais criativos contadores  de histórias no mundo.
Jorge Amado faleceu aos  6 de agosto de 2001, em Salvador.


Para finalizar minha fala, retiro de meu livro “Os Enganos Cativantes” um poema em que celebro Jorge Amado, escritor maior e criatura generosa, com quem tive o privilégio de ser um de seus amigos. Escutem o poema.


Peripécia de Jorge Amado
              
            
Eu te louvo pelos oprimidos
Nos subterrâneos da liberdade,
Teu pulso erguido com amor
Fale da seiva de servos,
Calo sem orvalho na trama
Do ouro vegetal com rifle na curva.
Teu verde galope indormido,
Na seara vermelha tua face
Carregando sede e fome,
O olho do sol crepitando
Céu de fogo na aurora,
Fósforo aceso no crepúsculo.
Teu riso leonino fendido
Com os capitães da areia,
Esse trauma de ladeiras
E ruas do mundo sem teto
Escondido na hora da ciranda.
Eu te louvo no peito lírico,
A garra de Teresa Batista,
Fome de Dona flor, agreste Tieta,
Rosa de Gabriela, cravo de Nacib.
Quem te fez pastor da noite,
Vasco Moscoso, flor do povo,
Pedro Bala, amado guerreiro,
Boêmio, malandro, meretriz, violeiro,
Guardador de chaves africanas,
Verdade absoluta em Pedro Arcanjo,
Duas mortes de Quincas Berro Dágua,
Gargalhada da Bahia ao infinito?
Ó meu capitão de longo curso
Tua cidade de mares e ventos
Amanhece repetida de foguetes,
De estrelas e atabaques anoitece,
Nos terreiros orixás estão descendo.

  
·        Trabalho apresentado na Semana de Jorge Amado, promovida pela Academia de Letras de Itabuna – ALITA, na Faculdade de Tecnologia e Ciências, Itabuna., 27 de agosto de 2012.