Dia Nacional da cultura: menos lamentos, mais argumentos

 

 

Dia Nacional da cultura: menos lamentos, mais argumentos


* Zulu Araújo


Em 15 de maio de 1970, a Lei nº 5.579 instituiu o Dia Nacional da Cultura, comemorado a 5 de novembro de cada ano, como homenagem ao nascimento de uma figura exponencial da ciência e da cultura no Brasil e no mundo. A data teve como inspiração o conselheiro Ruy Barbosa, nascido a 5 de novembro de 1849. A controvérsia começa exatamente nessa homenagem. No dia em que veneramos a cultura nacional, consagrada por sua diversidade, pelo diálogo entre as raças, homenageamos Ruy Barbosa, baiano da Freguesia da Sé, na cidade do Salvador, na então Província da Bahia, símbolo maior da elite conservadora brasileira. Ruy Barbosa escreveu um triste capítulo da nossa história quando queimou os arquivos da escravidão, segundo ele para “acabar com o passado negro do Brasil”. Esse fato, aparentemente nobre e positivo, como foi alardeado durante longo tempo, em verdade, favoreceu a elite conservadora brasileira de então e impediu e impede, até hoje, que conheçamos uma parte importantíssima da história do nosso país e, consequentemente, da nossa cultura; o que em muito ajudaria compreendermos melhor o singular e complexo processo de formação da sociedade brasileira e os caminhos a serem percorridos para a superação do nefasto legado que foi a escravidão.

Em vez de negar a história, ou mesmo essa personalidade fundamental para a cultura e a ciência nacional, eu, conterrâneo de Ruy Barbosa, prefiro tirar das sombras meus atabaques, meus cantos, meus toiços, balangandãs e a sabedoria e generosidade que nos rodeia para ocupar o terreiro central do Brasil e comemorar nossas vitórias. Comemorar a preservação da nossa memória, festejar os espaços conquistados, exaltar os intercâmbios realizados com a África e toda a diáspora, particularmente com a América Latina, e consolidar dentro e fora do território nacional a força cultural do país mais negro do mundo fora do continente africano. Somos a segunda nação em tamanho, e sem dúvida nenhuma, um dos grandes celeiros do mundo em cultura. Por isso mesmo podemos afirmar com tranquilidade que grande parte dessa rica produção cultural tem a alma e a criatividade da mão afro-brasileira.

Para que praguejar pelos equívocos do passado? Para que cultivarmos a raiva envelhecida dos radicais? Esse sentimento expressado pela via do racialismo, que de forma pueril alguns dos nossos companheiros têm tentado utilizar, só nos arrasta de volta às senzalas da ignorância. Faz-nos perder tempo, atiça o ódio e o ressentimento, despreza todos os anos de luta, todas as batalhas vencidas e tantas e tantas vitórias alcançadas ao longo da história. A nossa luta agora é outra! É a luta das linhas bem escritas dos nossos pensadores, dos passos e saltos milimétricos dos nossos bailarinos, dos trinados e vocalizes, cheios de magia dos nossos músicos e cantores. E, claro, das orientações sábias do povo, que, com firmeza e determinação, vem derrotando paulatinamente o atraso, o conservadorismo e o racismo no país. São essas as nossas armas, e com elas faremos a próxima revolução. Em 1970, quando a data foi instituída, com certeza não éramos nós que estávamos no centro do terreiro. Era a ditadura que cantava de galo e jamais seria um negro como eu que estaria escrevendo estas linhas nesta página.
Sou presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura do Brasil responsável pela gestão da cultura afro-brasileira. E comemoro fervorosamente a oportunidade de, neste mês de novembro, quando também comemoramos o Dia Nacional da Consciência Negra (20/11), oferecer ao país uma agenda de projetos e ações culturais que comemora nas cinco macrorregiões, nas capitais e cidades do interior do país, um vasto painel da nossa produção e da nossa diversidade.

E tenham certeza: no que depender dos verdadeiros agentes culturais deste país, em sua maioria negros, vocês não ouvirão mais lamentos, gritos raivosos ou violências gratuitas. Continuaremos para sempre indignados, revoltados, revolucionários, mas com uma diferença fundamental: livres. E viva o Dia Nacional da Cultura! “Toca a zabumba que a terra é nossa”. Axé!


Publicado no Correio Braziliense, caderno Opinião, em 05/11/2010


* Zulu Araújo - É baiano, arquiteto, produtor cultural e ativista do movimento negro latino americano. Ex-Presidente da Fundação Cultural Palmares. Atualmente é diretor da Casa da Cultura da América Latina/UnB.