Viajar é preciso? - Maria de Lourdes Netto Simões

Viajar é preciso?



Maria de Lourdes Netto Simões*

Lembrando  navegadores antigos, disse Fernando Pessoa: navegar é preciso, viver não é preciso. E retomou a  frase gloriosa, pensando na sua própria razão de viver, daí ter afirmado:  viver não é importante, o importante é criar (pórtico de Mensagem). E a sua obra aí está para testemunhar a sua certeza. 

Valendo-me da idéia, eu pergunto: viajar, é preciso?  Distanciada daqueles navegadores antigos, pelo tempo e pela tecnologia,  mas próxima deles pela curiosidade sobre o desconhecido, sobre o conhecimento do outro, sobre  a surpresa e o encantamento da viagem, reponho a assertiva, reformulando a sua segunda parte, pela afirmativa: Viver é preciso!    Então, à luz do pensar antigo,  poderia raciocinar: se viver implica conhecer,  conhecer  implica navegar.

Com essa afirmação,  estou considerando  viajar, enquanto navegar,  na mais ampla acepção possível,  respeitadas as opções de viagem de cada indivíduo em busca do conhecimento: viagem deslocamento, viagem imaginária, viagem virtual...  No entanto, para essas considerações,  concentro-me na primeira acepção, ou seja,  viagem enquanto deslocamento.  Fazendo, ainda, a relação com os navegadores antigos, constato  que o espírito que movia o Viajante – o descobrir – já não move hoje as pessoas na mesma medida,  contextualizadas que estão num mundo tecnológico e que lhes entra pela porta adentro, através da tela da TV ou do écran do computador. O  mundo vem até nós, não mais precisamos ir a ele.  Posso percorrer uma grande distância simplesmente com o clicar do mouser. Posso ver as caras de um povo sem sair da minha poltrona.  Então,  para que viajar?,  pode o leitor perguntar. 

Se por um lado, as viagens virtuais são uma  forma de aventura, por outro lado, as viagens com deslocamento o são mais ainda.  Se queremos ir àqueles lugares “visitados” através da tela, a tecnologia nos proporciona meios de, por algumas horas, fazermos as viagens que, no tempo dos navegadores antigos, levavam uma vida inteira.    Aviões supersônicos garantem que, em pleno verão tropical brasileiro, por exemplo, podemos somente necessitar de algumas horas para que estejamos  na China, num inverno de 15 graus abaixo de zero. Se, ao contrário, dispomos de mais tempo ou  não pretendemos ir tão longe, há transatlânticos de luxo, trens, ônibus... tudo, a depender do poder aquisitivo do interessado.  Essas são constatações óbvias, desse nosso mundo capitalista.

A pergunta que persiste é se, nesse contexto global,  há espaço para o Viajante.  E a insistência da pergunta se justifica quando considerado, não somente, que  o contexto sócio-cultural contemporâneo é outro do daqueles navegadores antigos, mas, também,  que as condições e o próprio objetivo das viagens, necessariamente, mudaram.  Nesse caso, teria cabimento a idéia do Viajante acima mencionado, ou seja, aquele que viaja  buscando a aventura do descobrir?

Sabemos que no contexto atual, o fator tempo é fundamental. Diz-se mesmo que tempo é dinheiro.  Por conta disso, as viagens hoje tomam nova  feição,  ligadas ao lazer  e à otimização do dito precioso tempo.  O  Turista preenche essa nova configuração; é aquele que viaja por prazer, buscando locais de interesse.   Mas seria esse turista  aquele Viajante referido, aquele que procura?  Ou pelas circunstâncias sócio-econômicas estaria condicionado  a receber o que o mercado lhe oferece? Onde a diferença?  Consideremos as condições da viagem.

Hoje, os pacotes turísticos oferecem  as  viagens programadas, seguras,  protegidas, selecionadas pelas agências especializadas para atender aos vários tipos de clientes, desde os da classe econômica aos da classe de luxo.  Variando quanto ao tipo de transporte e acomodação que escolhem (podem pagar), todos são exigentes  quanto à realização da  programação comprada.  Assim, dentro do que lhe foi proposto e aceito, ao viajar, passivamente, o turista vai sendo sedutoramente conduzido (pagou para isso).  É a agência quem o leva  a restaurantes, dá a sinalização dos locais para compras, dos pontos considerados de maior interesse para visitação (históricos, ambientais, etc). Se por um lado, muitas das vezes, quando lá chega, invade-o a sensação do déjà vu, por outro,  ele tem a necessidade da constatação do anunciado pelas propagandas, a  cobrança do já  prometido (paguei, quero ver). Onde a surpresa, a descoberta do diferente?   No corre-corre para atender a uma programação pré-estabelecida,  ele vê o máximo num mínimo de tempo. A pressa, o sem-tempo, determinam a aceitação do já pensado, do já pronto e selecionado. Todos vêem  o mesmo, porque é o melhor [será?], assim pensou a agência, assim passivamente aceitam. Onde a possibilidade do imprevisto? Quando o prazer do impensado, do não programado? E então, o que resta do Viajante?  Nesse mundo tecnológico há espaço ainda para um Viajante  (com V maiúsculo)?. Se tudo está visto ou mostrado, o que resta ao Viajante?  Qual a sua diferença em relação ao turista fabricado pela  mundo econômico, pela media, pela globalização?

Onde o olhar para o diferente? Onde  a  descoberta? Onde o novo da perspectiva do olhar? Onde a surpresa? Onde a troca? O convívio, a experiência, a  soma? 
Como pensar em Viajante nesses tempos de novos apelos? Se sabemos que os meios de comunicação transmitem as imagens e informações de uma determinada perspectiva (geralmente a do poder), não seria razão de viagem o conhecer as diferenças a partir do nosso próprio olhar?  Neste contexto em que as situações hegemônicas de raça, lugar, cultura não mais têm lugar; um tempo em que a diferença é respeitada enquanto valor, não seria essa própria condição a justificadora de um novo olhar?  Não estaria aí o espaço para o Viajante?  Uma forma de luta conta a mesmice da globalização?

Nesse caso,  tendo em conta a distância temporal dos navegadores evocados por Fernando Pessoa,  proponho a consideração de Viajante não mais como aquele que busca descobrir, conquistar, mas como aquele que tem o olhar alargado para o conhecimento do outro;  aberto a novas experiências culturais e para o respeito à diferença.  Esse, o Viajante do terceiro milênio.


* Publicado no Boletim Literário da Embaixada do Brasil em Lisboa