MORCEGO - Hélio Pólvora


 





MORCEGO

*Hélio Pólvora

João Pedro deixara a janela aberta; entra um morcego no lusco-fusco. Ou, se preferem outro modo de dizer, entre lobo e cão — que é aquela hora para uns triste e enfermiça, para outros alegre, já que medeia entre o fim do trabalho e a volta para casa. A hora em que, intelectual ou não, entra-se no bar para a oração costumeira antes de entrar em casa.
A tarde debruçada sobre um peitoril de nuvens aguarda a noite chegar, como faz em todas as partes desde que o mundo é mundo. A janela está, ora pois, aberta, não de par em par, porque é inteiriça, e o morcego entra no quarto, tugúrio ou caverna de João Pedro. A princípio ele não dá pelo intruso; ignora de que lado viera aquele esvoaçar, se do mar, se do morro ou de algum pântano. Descoberto e identificado afinal, o morcego esvoaça e pende de uma trave a cabeça baixa, e fremente.
Esvoaça, segundo se diz, porque, no começo, parece-lhe uma mariposa. João Pedro gosta de mariposas, sobretudo se negras e tatalantes. Dizem que dão sorte. E ele precisa de sorte, muita sorte. Para o quê? Não lhe perguntem que não sabe direito. Talvez para sobreviver. No apagão em que vive, quase uma penumbra, mísera cota de energia para quem necessita tanto abrir os olhos, é natural que confunda mariposas com morcegos, bem-te-vis com milhafres. Mas, olhando bem, firmando a vista, vê um morcego que se retorce sobre si mesmo, como um pião, dependurado do teto de um quarto da mansão de Anabela. E chia.
Quanto ao chiado, tudo bem. Quem não chia não arruma uns trocados com que pagar o condomínio, nem desapropria fazendas a custo zero. Quem sabe o chiado do morcego não é um idioma com verbos irregulares, pronomes oblíquos e crases traiçoeiras?
“Um rato de asas”, ele diz a si mesmo.
O intruso ouve-o.
“Apenas um morcego”, chia.
“Dá no mesmo.”
“É diferente. Temos asas, mas não voamos alto, por cima da carne seca, como certos ratos de vocês na administração pública.”
“Pretende demorar-se?”
“Nada receie, não sou hematófago. Guarde o seu sangue para pagar os impostos.”
“De onde vem, velho morcego?”
“Do escuro para o escuro. É favor não me chamar de velho.”
“Preconceito?”
“Não. É que nós, morcegos, somos todos jovens.”
E assim dizendo, torce o focinho minúsculo e abre as membranas das asas. Têm uma transparência diáfana que a João Pedro parece pura, incorruptível. “A juventude eterna dos morcegos”, pensa. “Esse aí, dependurado da trave, pode até chamar-se Fausto, mas não precisará fazer pacto com Mefistófeles.”
“O que pretende aqui?”
“Ora, caçar.”
“Caçar o quê?”
“Insetos, homem. Caça miúda. A caça grossa fica para os senhores. A temporada de caça está aberta para os morcegos a vida inteira.”
“A nossa também, mais ou menos.”
“Mas tem uma diferença.”
“Sim?”
“Nós, morcegos, hematófagos ou insetívoros, caçamos apenas para comer. Já leu sobre a sobrevivência das espécies?”
“Ouvi referências a um tal de Darwin. Olhe, se for por uma noite só, pode ficar. Já que não tenho a noite das Valquírias, terei a noite do morcego solitário. Fausto, vamos fazer um trato.”
“Qual?”
“Voe alto, que tenho alergia a bafo de morcego. Cuidado para não esbarrar comigo. Às vezes eu ando de noite por esta caverna, a recitar centúrias de Nostradamus em latim.”
“Não há perigo. Morcegos são cegos, mas têm um radar infalível. Desviam-se do obstáculo por um triz.”
“Então, com licença que vou dormir, e você vai à caça. Bom proveito. A casa é sua.”
“Boa noite, senhor”, deseja-lhe o morcego.
Antes do romper do dia, João Pedro ouve um ruflar de asas. O morcego foge da luz, que o exporia a perigos, para a escuridão que lhe dá alento. Vai de bucho cheio. Simples, pois não?, a vida dos morcegos. Desde que não sejam vampiros. De incisivos afiados João Pedro já estava farto. Tinha as jugulares estraçalhadas. Também tinha os incisivos cariados.
Não era fácil ser Don Solidon.
(Capítulo do romance Don Solidon)

*Hélio Pólvora é jornalista e ensaísta