QUEM SOU E NÃO ME ACHO - Hélio Pólvora (especialmente para o site da ALITA)





Quem sou e não me acho


*Hélio Pólvora


     Há perguntas complicadas. A pior de todas é aquela que às vezes eu me faço: quem é Hélio Pólvora? Se me olho no espelho, em que não me vejo e sim a um sujeito apenas conhecido, provavelmente o meu sósia, ele nada esclarece. Os espelhos existem para confirmar ou assustar. Ou refletem o belo ou a fera.
     No meu caso, ele ainda não se definiu. Se vier a optar pela fera, decerto soltarei um berro e me atirarei pela janela. Calma, Ceres Marylise, ainda não aconteceu.
     O que sei ao certo a meu respeito está nos documentos ditos oficiais: nascimento numa fazenda de cacau num certo dia de certo mês do longínquo ano de 1928. Pois é, façam as contas e verão que estou ficando velho. Uma idade espantosa. Por que, ou melhor: para que a longevidade? Talvez a vida me reserve o privilégio de resolver o conflito palestino-israelense. Ou cometer uma obra-prima de romance que não teria leitores nestes tempos de hedonismo e aventuras radicais.
     As biografias tradicionais são enfadonhas, mera enumeração de fatos e dados, de muitos êxitos e raros fracassos. Pressinto que esta será heterodoxa. Já no começo da meninice eu andava de dedo espetado no ar, a escrever nas paredes da casa. Esse primeiro indício de loucura, segundo pensou a família, coincidiu com o aprendizado do ABC.
    Grande descoberta que eu não trocaria por uma jornada ao fundo do universo estelar. Do ABC pulei logo para o jornal e o livro. As leituras e mais adiante, a escrita, deram sentido à vida. Cinema, música e a contemplação de artes plásticas ajudaram. Sou um grande devedor da literatura. Devo, não nego; pago quando puder.
     A solidão e a vaga tristeza de uma fazenda de cacau, sobretudo à tarde, quando o crepúsculo esparge as primeiras sombras, e à noite, quando os paredões de treva se fecham, explicam o resto. Se me virem sozinho, ensimesmado, no meio da multidão insensata, guardem a piedade: estou cercado de personagens, dialogo com Emma Bovary, Lucien de Rubempré, Jude Fawley, Ana Kariênina, Ivan Karamázovi, Bento Santiago. A convivência é boa, raramente dissentimos.
    Sou fragmentado, estou sempre a recolher os meus pedaços - e estes vibram. Espalho-me, tal e qual Mário de Andrade depois de morto, por ficções alheias e próprias. Desisti de conhecer-me porque a tarefa seria longa e em nada aumentaria a conta bancária. Aconselho o mesmo a quem quiser me conhecer: fiquem ao largo, na órbita das aparências, de vez que nem mesmo João Pedro, considerado por alguns críticos o meu alter ego, personagem do romance Don Solidon, permite a descoberta de Hélio Pólvora. Seria mais fácil e mais prático chegar à pólvora, se os chineses antigos não houvessem patenteado a descoberta, importante para os terroristas e pirotécnicos de hoje.
    Pronto, terminou a busca. Autobiografias heterodoxas são assim mesmo: fluidas, espectrais, farrapos de névoas. Corrijo-me a tempo: a busca prossegue, porque na verdade ainda não me encontrei e quanto mais me procuro mais vejo que não estou mais onde me deixara ficar.
    Sempre que me ponho em um lugar, volto e não me encontro. Tudo mudou, a começar por mim; a paisagem é outra, as pessoas trocaram de identidade.
    Tenho andado: viagens longas que parecem dirigidas à esquina da minha rua: viagens curtas à roda de mim, do meu quarto, que parecem descidas ao âmago de trevas ou ao fundo luminoso de mares.
     Sou de Itabuna. Da época, meados do século passado, em que havia dois cinemas com filmes, notadamente seriados, que nos inflamavam o imaginário; e pessoas muito especiais: o educador e político Aziz Maron, elegante e lúcido; Ubaldino Brandão, que eu avistava à noite, pela janela aberta de sua casa, debruçado sobre um livro, à luz forte da pantalha; Alberto Galvão, culto e sensível, com quem eu conversava às vezes em bares; Nicodemos Barretto, o da casa bancária e loja de ferragens, que se detinha na caminhada  pós-jantar para puxar conversa com um mero adolescente; Moisés Alves, que me emprestava volumes de Eça de Queiroz encadernados em marroquim vermelho; Firmino Rocha em suas crises; o footing das moças casadoiras pela então Rua J.J. Seabra, ou na Praça Olintho Leone; o Rio Cachoeira limpo no qual me banhava e pescava; os amigos Amarante Santiago, José Mendes e Telmo Padilha, este sempre engravatado e de terno de linho branco; Hélio Menezes, a ler Oscar Wllde no original e soltar gargalhadas; o prefeito Alcântara.
    A fieira de imagens seria longa; melhor parar antes de novas omissões. Esta é a Itabuna que conheci e vivi e mantenho acesa nas esquinas, praças e becos da memória. Afastei-me 32 anos, no Rio de Janeiro, onde inaugurei uma padaria espiritual – e Itabuna  mudou. Eu também mudei, não há como voltar, ambos expatriados.
    Acrescento que publiquei 12 ou 13 livros de histórias curtas a que chamam contos. Creio haver perpetrado uns 120 contos; melhor se fossem contos de réis: eu os teria aplicado e talvez possuísse hoje um castelo à beira-mar, para conforto da minha Annabel Lee. Como eram apenas contos literários, resta-me catar as pedras do caminho para o sonhado solar, conforme pensou o poeta Fernando Pessoa.
   Publiquei ultimamente dois romances, Inúteis Luas Obscenas e Don Solidon, e tenho outro engatilhado. Sou membro efetivo de quatro academias de letras, incluindo a brava Alita, do berço itabunense, e me considero um grande escritor digno do Nobel – mas não necessariamente o maior da minha rua. Acredito mais nos poderes da ficção do que na realidade. E Itabuna está toda ela, filtrada pela sensibilidade, nos meus contos, romances e crônicas de visgo sul baiano.
    Está feito, prezada acadêmica Ceres Marylise. O essencial foi dito nesta (auto)biografia, o resto é blablablá. Escrevi muito: culpa do outro, o meu sósia, que às vezes gosta de me arreliar.

Salvador, 27 de janeiro de 2013



     *Hélio Pólvora é escritor e jornalista.