VIOLÊNCIA NOSSA DE TODO DIA - Sônia Maron



Jorge Amado em Ferradas, com Cyro de Mattos e Telmo Padilha, em segunda visita ao local  onde seria seu museu. Na primeira visita, na década de setenta do século passado, destinada à mesma finalidade, o escritor estava acompanhado de Jean Paul Sartre e Simone Beauvoir entre outros notáveis do mundo político e intelectual da região. 



VIOLÊNCIA NOSSA DE TODO DIA

Sônia Maron*

          Pessoas sensíveis e lúcidas demonstraram, pelos meios de comunicação, a indignação diante de mais um dos incontáveis atos de vandalismo, representado, desta   vez,  pelo dano causado à figura de Jorge Amado, na visão do escultor Lavrud  Durval,   existente na entrada de Ferradas,  pedaço do chão grapiúna onde nasceu o escritor. Pedradas? Tiros? Os sinais deixados pelas mãos de um ou alguns  sociopatas, maculam,  hoje, a estátua do ídolo que apresentou ao mundo a região sul da Bahia, com toda a riqueza de sua cultura multifacetada e toda a tristeza da injustiça social que o poderio econômico dos coronéis ocultava. A escultura apresenta o amado Jorge, com o braço estendido,  acolhendo  moradores e visitantes, símbolo da hospitalidade de quantos nasceram no logradouro que atualmente é identificado como um bairro de Itabuna. Por que a surpresa?  Quando, nesta pobre região, particularmente em Itabuna, foi respeitada e preservada a cultura, a história, a contribuição dos filhos que alçaram  voo?  O fato é que Itabuna tem  respeitável currículo de vandalismo, ocupando lugar de honra a categoria especial que se desenvolveu em nossa cidade, onde atuaram em parceria, o poder público e o poder econômico privado, que teve como vítima mais recente o Colégio Divina Providência. Salvador não fica atrás, servindo de  amostragem o desaparecimento do busto de Stefan Zweig, no Porto da Barra, talvez pelo crime de apaixonar-se pelo Brasil, onde residiu algum tempo,  e particularmente  pela Bahia, intitulando  um dos seus livros “Brasil, país do futuro”, prefaciado por Afrânio Peixoto, que expressou seu agradecimento ao escritor austríaco  dizendo que “ninguém escreveu retrato mais favorecido do Brasil”[1]. Ainda é Salvador que extermina a homenagem a Vinicius de Morais, em Itapoan, sem esquecer que o Rio de Janeiro não deixa em paz  a materialização, em bronze, do carinho do povo carioca a Carlos Drummond de Andrade.  Saliente-se, concessa máxima vênia, o vandalismo institucionalizado e “permitido” do MST, que já atingiu até as instalações do Congresso Nacional e  empresas públicas  e  privadas de relevante expressão econômica e social. Resta concluir que são significantes da cultura nacional. Quando noticiados merecem apenas notinhas discretas de canto de página nos jornais de maior circulação e nas redes sociais.
          Consta que antigos moradores  lembram  textos de  Jorge  com expressão chula dirigida a Ferradas. E daí? Esquecem que Jorge é um representante do regionalismo, tem um estilo único   que é sua identidade literária. Que me perdoem os  apedeutas: se a leitura do escritor, com relação à expressão grosseira, fosse de achincalhe,  não teria comparecido no final da década de setenta, em companhia de Jean Paul Sartre e Simone Beauvoir,  integrando uma comitiva de políticos, celebridades locais e intelectuais para o lançamento da pedra fundamental  do memorial a ser edificado na casa onde nasceu. Lá estavam Cyro de Mattos, Telmo Padilha,  Fernando Maron (como intelectual e intérprete do casal francês) entre muitos e muitos outros, até mesmo a autora deste texto, à época concluindo o curso de Direito na FESPI. Eu vi, participei, posso testemunhar até a expressão de felicidade do homenageado. Como consegui acompanhar tanta gente ilustre? Com a cumplicidade do meu amigo Telmo Padilha.
          Lamentável  é o quotidiano da vida social. O vandalismo,  a violência descontrolada,  o criminoso despreparo dos responsáveis pelas casas de espetáculos que pode ceifar a vida de outros jovens brasileiros, como ocorreu na cidade universitária do Rio Grande do Sul; sociopatas e psicopatas, portadores de distúrbios de personalidade que impedem a observância de leis e obrigações e até mesmo aqueles que se caracterizam por condutas antis-sociais, com ausência de sentimento de culpa, circulam livres e despreocupados,  protegidos pela indiferença e conformismo de um povo que não acredita possível a soberania da lei. É isso aí. Por que a surpresa? No Brasil o vandalismo tende a incorporar-se às manifestações  sociais e políticas;  nos Estados Unidos o  presidente  Barack Obama  tenta o controle da venda de armas de fogo e os “representantes” do povo não concordam; continuam as chacinas nos colégios americanos e entre nós o uso e tráfico de drogas – maconha, crack e cocaína – penetram  nos colégios públicos e talvez nos particulares. Todos sabem. Ninguém fala,  enquanto a festa continua. Talvez o silêncio seja a atitude politicamente correta...  Enquanto isso,  serve de conforto o pensamento de Lacan:
          Não pretendo absolutamente tecer críticas contra a sociedade em que vivemos.Ela      não é pior nem melhor que as outras. Uma sociedade humana sempre foi uma  loucura. Não está pior do jeito que está. Isso continuará sempre, continuará sempre da mesma forma”.[2]
            Enfim, minha gente, aqui, no solo tupiniquim, tudo é carnaval, que por sinal já  vem chegando! E viva a Bahia  com o trio elétrico, a música que levanta a poeira e seus intérpretes! Aliás, Jorge, o Amado, já disse que somos o país do carnaval; ele e Stefan Zweig estão empatados:  o escritor vienense disse que o Brasil é o país do futuro, nosso Jorge disse que é o país  do carnaval e receberam igual recompensa. Como entender nosso povo?  Nem mesmo Lacan  conseguiria. Se pudesse comunicar-se com os amigos, Jorge agradeceria  a solidariedade e carinho da imprensa grapiúna, tradicional e moderna (dos blogs e sites); aconselharia, no entanto, muito cuidado  com as  pesquisas de opinião, lembrando que o povo crucificou Cristo e absolveu Barrabás.  Nada mudou.  Nem sempre a regra da maioria é sábia na mão de quem não sabe usá-la.  Ferradas,  pelo bom senso e para conferir visibilidade àquele pedaço das terras do sem  fim, onde nasceu de fato e de direito, seria o espaço por ele escolhido. Em Ferradas, que Jorge permaneça em local visível e protegido, a exemplo da pracinha onde está situado seu museu, se não for aconselhável  deixá-lo permanecer como estava: no posto de verdadeiro anfitrião!

*Sônia Carvalho de Almeida Maron
  Vice-presidente da Academia de Letras de Itabuna – ALITA                                                                           
        

[1] ZWEIG,Stefan.  Obras completas, tomo XIV, Rio de Janeiro:1956. Editora Delta, , p. 5
[2] LACAN,  Jacques Marie Emile. Trechos selecionados do pensamento de Jacques Lacan. Coleção Guias da Psicanálise. Escala. São Paulo: 2012. v. 1. p. 95.