SOUZA EXTRAIU OS DENTES - Hélio Pólvora




SOUZA EXTRAIU OS DENTES

*Hélio Pólvora

Souza desapareceu da redação do jornal. Sua mesa foi ocupada por outro, que entrou a batucar com firmeza, vexado e veloz, como se a polícia política estivesse à porta. Escrevia de olhos esbugalhados, a lançar olhares aflitos para os lados e até por cima do ombro. Da Avenida Rio Branco, no Rio, chegavam pela janela ruídos de bolas de gude a rolar no asfalto, de cavalos a derrapar e derrubar soldados da tropa de choque em perseguição a manifestantes que os vaiavam.
A ausência do Souza não me preocupou. De vez em quando ele sumia, em missões secretas. Uns o diziam em Santiago do Chile, com dinheiro arrecadado para exilados. Outros o supunham em São Paulo, na organização de células do Partidão. Afora esses lances heroicos, era um sujeito calmo, de bons modos, recitava comigo poemas de García Lorca e Rafael Alberti.
Mas aquele sumiço do Souza, o último que testemunhei, durava muito. Senti falta do interlocutor. Sem o seu saber literário, a redação banalizava-se, o chope no boteco da esquina, chamado Paredão porque nos alinhava em pé, na calçada, arrimados à parede, perdia o sabor. Daí a minha alegria quando, ao entrar certa tarde, no apogeu da era dos teletipos e máquinas de escrever, dei com o Souza.
Sou do tipo desavisado e distraído, tanto assim que os assaltantes de Salvador, piedosos, só me abordaram cinco vezes até hoje. Foram-se os relógios, cédulas bancárias e documentos (um destes, a carteira de sócio do Yacht), mas ficaram os dedos para digitar. Mesmo assim, com esse jeito de cego perdido em tiroteio, notei que o Souza não batia à máquina, que suas mãos pareciam inchadas. Também havia alguma coisa de errado no sorriso: o Souza velho de guerra sorria sem espontaneidade, com as gengivas intumescidas. Fui dar-lhe um abraço.
“Extraiu um dente?”, perguntei no maior dos alheamentos.
“Infecção generalizada”, respondeu o Souza. “Perdi todos de uma tacada. Ou de um giro único do torquês”.
E, com um sorriso que era mais uma careta, Souza exibiu as gengivas nuas, enquanto a mão inchada, de dedos sem unhas, também arrancadas, descansava ainda no meu ombro. Pensei em um verso de Lorca sobre a Guarda Civil Espanhola: “Tienen, por eso no lloran, de plomo las calaveras”. Mas o momento desaconselhava erudições.
Dias depois, dei com um amigo desnorteado,  o Menezes, alcunhado O Vermelho — e não propriamente pela cor da pele. Trazia duas cartas de recomendação: uma do pai, para Plínio; a outra de um organizador de ligas camponesas na Bahia, para o Cordeiro.
“Que Cordeiro?”
“O editor do jornal Imprensa Popular”.
“Que Plínio?”
“Ora, o Plinoca. O ex-chefe integralista”.
“Mas você não era o Menezes Vermelho? Vai pular o muro?”
 “Preciso me garantir. Estou na pior. É lá ou cá”.
Não sabia qual carta entregar primeiro: assunto a discutir longamente em bares. Cartas no bolso, a olhar as janelas do jornal do Partidão, perto da Praça Tiradentes, Menezes vagava tardes inteiras pelos arredores, ia às matinês, ao bordel. Entrega, não entrega. Se entregasse, teria o gosto de esculhambar os americanos espoliadores, mas — e o contrapeso? Com certeza seria fichado, obrigado a frequentar células, a pichar muros, a se esconder da polícia. E se o pegassem ele não aguentaria um simples trompaço. Quanto a Plínio Salgado, este organizava tômbolas para manter seu partido, o PRP. Narrei o episódio do Souza, carreguei na descrição. Menezes estremeceu, pediu outra rodada ao garçom.
No entanto, a solução estava do outro lado da avenida, nas lojas de roupa masculina que facilitavam o crédito a rapazes direitos com avalistas. Bastaria a Menezes escolher a cor da camisa, vermelha, preta ou verde, satisfazer comunistas ou burgueses e seguir em frente. Mas o dinheiro voou, Menezes voltou à Bahia e casou-se.



*Hélio Pólvora, escritor várias vezes premiado, é jornalista, editor, cronista, crítico de cinema e literatura e tradutor de centenas de contos, romances e ensaios.