PAIXÃO DE AMOR BANDIDO - Hélio Pólvora




PAIXÃO DE AMOR BANDIDO
Hélio Pólvora


Há escritores que se isolam, criam suas próprias catacumbas, movidos pela paixão de escrever, em princípio para si mesmos e para o seu deleitável martírio.
Gustave Flaubert, que se definiu como “un homme-plume”, sentiu as garras de semelhante paixão. Alguns críticos admitem que ele teria adquirido a sua doença apenas para se pôr à sombra protetora da mãe viúva, e tentar a aventura do romance “científico” – aquele que o autor escreve sem, nas aparências, dele  participar. Refiro-me à obra impessoal, à criação desenraizada da formação psiconeurológica de seus autores. Flaubert confessou em carta a uma amiga: “O único meio de suportar a existência é se atordoar na literatura como em uma orgia perpétua”. O peruano Mario Vargas Llosa, há pouco galardoado com o Nobel de Literatura, tirou daí o título (A Orgia Perpétua) de uma notável e fremente interpretação de Madame Bovary — um livro inteiro, com  cerca de duzentas páginas,  e  muito mais esclarecedor e apaixonante do que os três grossos volumes (L´Idiot de la famille) em que Sartre tentou aproximar Flaubert da filosofia do existencialismo.
A declaração famosa de Flaubert, “Madame Bovary, c´est moi”, empalidece diante de outra: sua empatia com Emma era tal que, ao descrever a cena do envenenamento, ele sentiu o gosto amargo do arsênico, o fogo devorador, e teve ânsias de vômito.  As excentricidades vão além. Em carta a um amigo poeta, pregou a castidade durante a escrita: seria conveniente poupar energias que a obra reclamava. Nas agonias de sua criação torturante, Flaubert evitava encontros amorosos em Rouen com a sua musa Louise Colet; preferia masturbar-se.
É receita que não recomendo. 
Havia em Croisset, mansão paterna, uma alameda em que ele experimentava na língua o sabor das frases escritas na noite anterior. Era a “allée des gueulades” (poderíamos traduzir, talvez, por alameda ou aleia dos garganteios). Ali entoava palavras, uma a uma, em busca de dissonâncias, à procura de musicalidade mais intensa. E se notasse alguma dissonância, o mais leve desconchavo na fluência da dicção, ele se punha a reescrever.
Esta aplicação obsessiva, se não introduz a questão do estilo, que é tão velha quanto o ofício de escrever, acentua-lhe pelo menos a importância vital. A obra literária se realiza e permanece por meio da linguagem — e quem não entra na zona transfiguradora da realidade vulgar, mediante metamorfoses de narrativa e expressão, ficará a reboque da arte de escrever — como aconteceu de algum modo a Balzac, apesar de toda a sua enorme capacidade ficcional e de uma densidade  indiscutível.
Vargas Llosa, no seu ensaio, demonstra mais uma vez, à suficiência, que a boa literatura exige dedicação integral. É uma senhora exigente, dominadora. Insiste que lhe beijem os pés.  Ultimamente, ela assiste desolada ao menosprezo dos seus possíveis vassalos, tal a indiferença de muitos autores por um aprendizado árduo, pela abertura de um canal próprio de expressão, por um ponto de vista — por um estilo, em suma. A língua se abastarda, a comunicação se vulgariza e perde a identidade. E por que motivo?  Ora, porque falta paixão aos seus praticantes. Paixão avassaladora, paixão de entrega, de amor bandido — isso que justificou a existência de Flaubert.
Um escritor legítimo, desses que, como dizia Ernest Hemingway, andam à caça, não de leões, senão da expressão exata. dificilmente  escreverá à toa. Escreverá por impulso, fervor, angústia, necessidade de buscar-se, de se rever, de se encontrar, quer em si mesmo, quer nos outros. Está à procura de um lugar melhor no mundo, onde, em relativa paz, possa meditar acerca do sentido da vida, se tal sentido existe ou não, da finitude dos corpos e das crenças.
Talvez isso traduza uma visão romântica, sobretudo nesta sociedade globalizada, que é uma linha de montagem contínua de celebridades. Mas tenho a convicção, porventura errada ou tola, que um autor consciente cuidará de suas feridas com os bálsamos e unguentos à mão. Não pedirá misericórdia. Desejará secretamente o reconhecimento. No entanto, se este não vier, e raramente vem, e se vem muitas vezes dura o fulgor do relâmpago, pouco importa, pois o que ele quer mesmo, com todas as fibras, é ser lido por um grupo seleto: os quinhentos leitores previstos por Tchékhov, os cem imaginados por Stendhal ou os cinco, talvez menos, do defunto autor Brás Cubas. 


*Hélio Pólvora, escritor várias vezes premiado, é jornalista, editor, cronista, crítico de cinema e literatura e tradutor de centenas de contos, romances e ensaios.