BREVE ANÁLISE SOBRE A LITERATURA POÉTICA INDÍGENA BRASILEIRA - Ceres Marylise





BREVE ANÁLISE SOBRE A LITERATURA
POÉTICA INDÍGENA BRASILEIRA

*Ceres Marylise Rebouças
(dedico ao meu querido confrade e parceiro de trabalhos, Jorge Batista)


    O presente estudo enfoca especialmente, a literatura poética dos indígenas brasileiros. É inadmissível continuarmos estudando a literatura da história universal através de apenas uma lente: faz-se necessário recuperarmos outras versões e vozes dessa história, outros testemunhos e códigos que geraram arte e literatura nesse imenso continente do qual o Brasil faz parte.
    Para entendermos a literatura indígena brasileira precisamos desatar alguns nós que durante séculos obscureceram um possível olhar sobre esse "outro" que também habita nosso território e, portanto, nos reflete. Necessitamos reconhecer a importância desse diálogo intercultural como via paralela, alternativa e clara ante a velocidade e o pragmatismo que imperam em nosso tempo.
     A voz dos povos das montanhas está na voz dos pássaros e se essas vozes emudecem é porque seu povo está morto. Vida, voz, povo e canto, são cores do mesmo tecido. A metáfora se sobredimensiona ao recordarmos que esses povos habitam territórios povoados de lugares sagrados e guardiões naturais. Ao entardecer, os pássaros são as vozes do diálogo dos povos indígenas com seus deuses.
      A poética indígena brasileira é a estratégia que usam para dar visibilidade à sua cultura, mostrando o alcance de uma língua não hegemônica, mas mesclada de palavras e saberes transmitidos pelos seus ancestrais em criações individuais.
     Seria inexato designarmos suas línguas apenas como "dialetos", quando suas variações linguísticas são  aspectos regionais como os de qualquer outro idioma. São signos linguísticos definíveis, com o ordenamento gramatical necessário à complexa gama de comunicação simbólica, metafórica e lúcida a partir de um sistema fonológico próprio.
     A arrogante exclusão de textos indígenas da produção literária ocidental evidenciou ainda mais os equívocos e o preconceito que os distanciava das demais, pressupondo-se que literatura só se referia à "redacta" com palavras perpetuadas no papel. Com isso, foram ignoradas categorias inteiras de representação de suas próprias configurações do tempo e do espaço com seus valiosos detalhes linguísticos: as sociedades "ágrafas" excluídas e sem qualquer valorização, sustentavam seu saber nas tradições orais e outros códigos diferentes da letra, como a pintura simbólica, o desenho nos tecidos, o artesanato, etc., gerando arte e preservando suas tradições através das histórias e das imagens poéticas demonstrando fortes ligações com a natureza para elucidar suas verdades, o que nos faz questionar sobre a visão evolucionista a partir do estruturalismo de Levi-Strauss que impregnou os estudos antropológicos das culturas indígenas. Muito além da visão etnográfica e antropológica da oralidade e de outros códigos, surge a palavra indígena com novos critérios para definir o literário, transcendendo a letra, pura e simplesmente.
      Sem pretensão de aprofundarmo-nos mais nesta problemática que exigiria estudos mais prolongados e específicos, chamamos a atenção para a necessidade de um reconhecimento mais amplo e apurado sobre a literatura indígena como forma de evidenciar os vazios que a literatura brasileira deixou.
     Esse atual horizonte sobre a produção intelectual do indígena brasileiro, demonstra uma mudança de leitor e de olhar comprovando que a sua leitura vai muito além das páginas e o ritmo dos seus textos poéticos vai mais além do que os sons de sua língua - quando o índio dança toca a terra e louva a natureza em sua pujança; isso é literatura, é poesia louvando a sua terra e  de seus ancestrais; quando ele canta ou silencia, é também literatura poética, conversando com seus deuses e seus ancestrais; sua poesia é canto de amor e respeito ao universo do qual faz parte. 
     Vejamos um pouco dessa belíssima literatura:


"Pedras são altares
 dos meus avós,
 escutas eternas,
 duras em seu silêncio,
 duríssimas em suas respostas"

_______



"Tínhamos a sabedoria,
e não havia maldade entre nós.
Havia saúde, devoção,
não havia enfermidade, dor de ossos,
febre, varíola, nem dor no peito.
Andávamos com o peito erguido.
Mas vieram os conquistadores
e tudo foi desfeito: ensinaram o temor,
murcharam nossas flores até a morte
para que vivessem as suas.
Já não havia sacerdotes para nos ensinar.
E assim começou nosso segundo tempo,
com outros senhores e isso foi a causa
de nossa morte: sem sacerdotes,
sem sabedoria, sem valor, sem altivez,
tudo se transformou em vergonha.
Os conquistadores mataram nossos deuses,
nosso sol, nossa lua, roubaram nossas matas,
nosso ouro e nossa prata!
E os filhos dos seus filhos ficaram entre nós...
deles só recebemos e aprendemos
sua grande amargura."

_______


"O lago que está
 perto de minha casa
 é um caracol gigante.
 Quando sonha,
 avisa que a chuva
 vem atrás do vento."