CÍCERO, EÇA A ANY RAND EM BRASÍLIA - Hélio Pólvora


Cícero, Eça e Ayn Rand em Brasília

Hélio Pólvora

  Chove a cântaros é uma velha expressão em português que não ouso perpetrar. Em Brasília chove canivete. Chovem cobras e lagartos. Chovem raios, relâmpagos, impropérios, estrondam trovões que sacodem a estátua de JK e as curvas sensuais da mulher amada, síntese de todas as mulheres sonhadas por Oscar Niemeyer. E, milagre dos milagres, entre um temporal e outro irrompe o sol - forte, escaldante, de ferver os miolos.
  Atarantado homem de planície, busco refúgio no planalto. Qualquer grota serve. Na Asa Sul, entro numa mercearia que também é bar. Os fundos resvalam para extensa área sombreada.  É o oásis. Um súbito vento brando agita mangueiras copadas, derruba mangas que ninguém recolhe. Devem estar fartos de tantas bondades federais.
  Abanco-me à sombra. Lá pelas tantas, e apesar de ser dia útil, com a tarde longe de declinar, vejo que não estou só. Da parede encardida fita-me um encanecido romano. É o Cícero. Não o que joga no São Paulo FC. O Marco Túlio dos discursos inflamados.
  “Orçamento equilibrado, dívidas públicas reduzidas, arrogância das autoridades moderada e controlada, pagamentos a governos estrangeiros reduzidos, se a nação não quiser ir à falência”, aconselha.
Olho ao redor. Ninguém, salvo o garçom e o proprietário atrás do balcão. Não descubro sinais de Gabinete de Crise, com o ministro Guido Mantega à direita da nossa presidentA.
  Cícero, do abismo do ano 55 AC, fala às paredes ou julga-me influente nas antecâmaras palacianas. Faço-lhe um gesto de assentimento. Ele franze a testa, por sinal cingida por uma coroa de louros, e arremata:
  "As pessoas devem aprender novamente a trabalhar, em vez de viver por conta pública”.
  Deve ter conhecimento da Bolsa-Família, da bolsa-presídio e outras piedosas formas de assistência social. Com certeza soube que centenas de costureiras, no Ceará, passaram em teste, mas desistiram do contrato com uma empresa que exigia carteira assinada. Não queriam perder o óbolo do governo, por nada deste mundo.
  Na parede, Cícero emudece. Deve ser o calor, que supera o das termas de Caracalla. Devo ter cochilado. Desperta-me uma casquinada escarninha. Um senhor de monóculo e semblante de diabo travesso pigarreia, na antevéspera de um dos seus ditos sarcásticos.
  “Políticos e fraldas devem ser trocados frequentemente; e pela mesma razão”.
  Pois é ele mesmo: o incorrigível Eça de Queiroz, o maior dos zombeteiros, porque conseguiu rir de tudo e de todos e ninguém riu dele. Satisfeito, dissolve-se aos poucos na parede, empurrado pelas primeiras sombras da tarde. Além de bolachas, bolos, pães, enlatados, picolés e bebidas, o dono deste bar-mercearia tem fumaças de literato, oferece na bandeja um pouco de cultura. Podia pertencer à Academia de Letras do Brasil, que o contista e crítico Almeida Fischer fundou em Brasília, ou então à Academia Brasiliense de Letras, a dos esquecidos, que logo se arregimentaram para dar o troco e entrar igualmente na imortalidade.
  Há um terceiro retrato esboçado na parede. É de mulher. Ainda bem que não esqueceram a mulher nesta sua digna pugna pró-inclusão em todos os sentidos, inclusive os nossos, que jamais se satisfazem de vê-las e seguir-lhes o sinuoso curso.
  “Quando perceber que para produzir você precisa de autorização de quem nada produz; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando verificar que muitos enriquecem pelo suborno e por influência, mais do que pelo trabalho"...
  Faz uma pausa para retomar o fôlego.
 “Quando você perceber que as leis não nos protegem deles, mas, ao contrário, são eles que estão protegidos de nós; quando perceber que a corrupção é recompensada e a honestidade se converte em autossacrifício”...       
  Nova pausa.
  É uma mulher séria, parece irritada. Agora a realidade me queima os olhos e a consciência. Quem será? Ayn Rand, a filósofa judia que fugiu da Rússia soviética em 1920? Só pode ser.
  Então você poderá afirmar, sem nenhum receio de erro, que sua sociedade está condenada” – ela conclui.
  Reconheço, atesto e dou fé. As declarações acima pertencem, sem tirar ou acrescentar uma vírgula, aos personagens citados. Assino em baixo, pago a conta de dois sucos de limão, à suíça, e retiro-me. Já é tempo; outra chuva, e provavelmente tempestuosa, está para desabar. 
  Brasília não tem esquinas, não tem calçadas, foi planejada para o reinado supremo do automóvel; sigo pelas trilhas de barro à frente de prédios, e de repente tudo me parece um grande sertão cujas veredas convergem todas para o Gabinete da Crise.