DE SALTO ALTO E VESTIDO VERMELHO - Hélio Pólvora


De salto alto e vestido vermelho

*Hélio Pólvora

Os bons ficcionistas sempre deixam indagações. Enfrentam cenas dramáticas decisivas, situações difíceis de descrever, mas se recusam a explicar tudo. Fica sempre aquela aura de mistério, aquele ectoplasma entregue ao leitor para que o enfrente e o dissolva. Nas ficções, a claridade excessiva estraga os efeitos; nada mais eloquente que a permanência de trevas. 
Se assim agem os ficcionistas, é porque conhecem a diversidade das reações humanas. Cada cabeça, uma ideia, um rumo, uma explicação – e nisso cabe o mundo. Esse introito aparentemente desconectado eu o ligo, agora, na tomada de O Museu da Inocência, romance do turco Ohran Pamuk, vencedor do Nobel de 2006.
É uma história de amor que dura, no mínimo, uns trinta anos. E como todas as belas histórias de amor, acaba em tragédia. Enraizou-se de tal forma na vida e nos buracos negros da personalidade de Kemal Bey, o infausto protagonista, que o leitor poderá objetar: haverá ainda amor assim, imune à mesmice, transformado em diária sarça ardente? Os arroubos não tendem a esfriar nesse congelador que é o tempo?
Antes de tudo, um aviso: o romance de Pamuk pouco tem de romântico. É o relato realista de um amor transbordante, sufocante, obsessivo: um moço rico de Istambul apaixona-se por uma balconista, Füsun, que o premia, em época de fortes preconceitos sexuais, com a virgindade. Amam-se cegamente, e mesmo assim ele oficializa o noivado com outra, Sibel. Convida Füsun  para a cerimônia. Ela vai – e no dia seguinte desaparece.
Seguem-se nove anos de busca desesperada pelas ruas, praças, bares, restaurantes, cinemas e mercados de Istambul. Um dia, Kemal encontra Füsun, que está casada. Para vê-la, apenas pela felicidade de vê-la, sem um simples toque, janta com a família, de quem se faz íntimo, três vezes por semana, durante nove anos, e a leva a diversões.
O divórcio da cativante Füsun materializa a possibilidade de retomada do apunhalante amor. Nesse ínterim, Kemal rompera com a noiva, a quem não conseguia amar: estava literalmente impotente. Füsun faz exigências: quer um giro de automóvel pela Europa, quer o casamento – e somente será sua, outra vez, quando casada.
Na estrada, pernoitam num hotel banhado pelas luzes de um posto de gasolina e de veículos que passam. Está na hora de defrontar o enigma. Deste faz parte Kemal com o seu egoísmo – mas o resto, a parte maior, vem de Füsun, do feminino contraditório, da mágoa que se fez dor e continua a pulsar e a querer, em contrapartida, algo além de um bálsamo. O casal terá inesperadamente a sua antecipada noite de reconciliação, o retorno, a felicidade, o amanhã orvalhado de júbilo. Mas Pamuk, tão perverso quanto Nabokov e García Márquez nas suas histórias de amor obsessivo, põe Füsun novamente em fuga.
O dia nasce. Ela caminha, de salto alto e vestido vermelho, de volta a Istambul, seguida por um cão. De automóvel, ele a persuade a voltar. Afinal, a mulher consente, desde que ela própria dirija até o hotel.  E, então, acelera. Pisa até embaixo. Bem sei, Kemal, que o cão, ao vê-la voltar, saiu para o meio da estrada. Imagino, Kemal, que ela quisesse poupar o cão, de todos o único inocente. Mas pense, Kemal: havia uma árvore na berma. Ela viu a árvore. Ela avançou contra a árvore. Acaso um dissimulado pacto de morte?
Você morreria feliz, com ela, mas tinha de sobreviver para pagar a dívida enorme, aquela felicidade que ela lhe dera e que você recolhera e havia retribuído sem o necessário grau de intensidade.  Sua linda Füsun vingou-se do amor obsessivo que a impediu de ser ela mesma, de ser atriz de cinema. Há no amor uma mistura letal de ressentimentos, ódio, raivas, bem-querer, êxtases e entregas.
Restam-lhe agora, Kemal Bey, as lembranças. Ainda bem que você, um cleptomaníaco do amor, roubou objetos em que ela tocara ou usara: pontas amassadas de cigarros, batom, lenços, brincos, o resto daquele sorvete. E o cão de louça tirado de cima do televisor. Eu gostaria de ir a Istambul (como outros a São Petersburgo só para ver o chapéu de Dostoiévski) e olhar este item do seu museu, que me parece fundamental, pois acho que, para outros, a culpa foi do cão na estrada.


*Hélio Pólvora é escritor, jornalista e contista.