DISCURSO DE POSSE DE HÉLIO PÓLVORA NA CADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA A 19 DE ABRIL DE 2013 - Hélio Pólvora

Discurso de posse de Hélio Pólvora
na Academia de Letras de Itabuna,
a 19 de abril de 2013

“Todos cantam sua terra, também vou cantar a minha”. O poeta Casimiro de Abreu  louvou  nestes versos juvenis os esplendores da sua terra fluminense. Eu, a caminho dos 85 anos, sigo o seu exemplo a propósito da minha terra de Itabuna, com os resíduos de lirismo que a idade avançada porventura ainda guarde.
As cidades levam sobre os homens a vantagem de ter muitas almas, uma em cada rua. E cada esquina esconde um menino que nos espreita com assombro. Tal assombro nada mais é do que a expectativa, a ânsia do amanhã, do que será ele amanhã e o que fará.
Eu me descobri em Itabuna quando esta cidade, hoje de porte médio, tinha uns 30 mil habitantes e vivia como que aconchegada a si mesma, como se fora uma grande família. Nasci no ventre dos cacauais, onde predomina o silêncio e o imaginário vem a ser atiçado. De modo que trouxe para a cidade um tanto do meu jeito de ser recluso e evasivo, melancólico e às vezes exultante.
Éramos assim, os velhos grapiúnas: estávamos no pódio ou, atrasados, reuníamos forças para galgá-lo. Hoje vagamos na planície, um tanto desconsolados. Felizmente esta cidade de Itabuna, apesar dos malfeitos da política, tem um metabolismo de hidra de Lerna: se lhe cortam um fôlego, logo repontam dez. É uma cidade estoica, de raro tino comercial, fundada por desbravadores que gostavam de empurrar fronteiras.
Creio que, por isso, ela se distanciou de mim, antes que eu dela me distanciasse. Aconteceu a 16 de janeiro de 1953, quando embarquei para o Rio de Janeiro, numa daquelas aeronaves de cujas turbinas escapavam labaredas. Fiquei 32 anos no exílio voluntário. Ao regressar, a cidade era outra, espalhara-se aos quatro ventos. Trocamos olhares desconfiados e continuaríamos assim, meio antípodas, não fora a insistência do escritor Cyro de Mattos em reatar laços, ao propor-me para esta Academia de Letras.
No entanto, algo ainda nos separa. De um lado, eu procuro a Itabuna dos meus idos de menino e adolescente, quando estudei com o professor Antônio Lira, que me ensinou a conjugar verbos irregulares, e com a bondosa professora Sancha Galvão, que me emprestava clássicos de literatura infanto-juvenil. De outro lado, a cidade se nega a continuar como era então, isto é: filtrada nas emoções de um menino inquiridor.
Mas a planta-baixa da cidade, esta eu a tenho na memória, gravada com um fogo de sarça ardente. Tanto assim que, de súbito, andando pelas ruas, dou com um beco, uma travessa, um quarteirão que me fazem pensar o seguinte: as rosas de Malherbe duram mais que o espaço efêmero de uma só manhã.
O mesmo ocorre com a minha origem rural: estão plantadas na memória árvores que me deram sombra e frutos, e ainda hoje estendem galhos secos na tentativa onírica de amparar-me. Vejo-as sempre com a impressionante nitidez lívida do relâmpago.
Senhoras e senhores acadêmicos:
Já perceberam, decerto, que estas são páginas de saudade. E que, uma vez na estrada, não tenho como retroceder. Se passo pela antiga Rua do Quartel-Velho, às primeiras horas da noite, vejo pela janela que o ex-prefeito Ubaldino Brandão estuda Direito à luz forte de uma pantalha. E que quase em frente, o advogado Nathan Coutinho estará à procura da chave certa com que fechar o último soneto de sua lavra, a ser estampado no jornal A Época. Se não for tarde, talvez eu ainda encontre Nicodemos Barreto, dono de loja de ferragens e casa bancária, a fazer o quilo, com as mãos trançadas às costas, na Rua J. J. Seabra, hoje Avenida do Cinquentenário. Ou, quem sabe, o coronel Oscar Marinho me detenha na calçada para uma prosa rápida. Ambos sabem que sou dado a leituras e às vezes me querem por à prova, verificar se o meu imaginário suporta a insustentável leveza da experiência prática.
Nessas andanças por uma Itabuna babilônica não haverão de faltar sons de piano. Posso encostar-me à janela baixa e ouvir absorto, sem assustar a moça que dedilha o teclado. Da Praça Olintho Leone chega a voz enrouquecida do poeta Firmino Rocha a declamar. O Rio Cachoeira escorre manso. Na margem oposta, a campina é varada pelo fogo-fátuo de vaga-lumes. O poeta Telmo Padilha faz o footing no seu terno de todos os dias: branco, engomado, paletó e gravata. Noite tardia, na Praça Adami, o promotor Jonathas Milhomens, com um leve odor de uísque na voz, talvez me dê um abraço e proteste: “Dr. Jonathas, não! Jonathas!” 
De regresso à Babilônia, nessas andanças por entre muralhas cobertas de musgo, eu me aproximo, quase sem querer, do velho endereço da família, uma chácara no alto do Pontalzinho, de onde eu soltava pipas sobre o centro urbano. Houve outros endereços: dois na Rua Ruffo Galvão; dois na Rua do Lopes, atual Av. Duque de Caxias.
Mas como não revisitar a memória de Alberto Galvão, advogado, homem culto e triste, com quem eu discutia às vezes, em um bar, temas existenciais? Como esquecer Aziz Maron, deputado estadual e federal, um dos maiores educadores que Itabuna conheceu, pessoa de fino trato, de modos gentis e cativantes? Havia ainda Hélio Menezes, morador na antiga Rua da Jaqueira, hoje Av. Fernando Cordier. Esse outro Hélio dava-se ao luxo de ler os paradoxos de Oscar Wilde em inglês e reagia às gargalhadas. Havia ainda Moysés Alves, com as obras completas de Eça de Queiroz encadernadas em vermelho, uma tentação.
Quanto a Cyro de Mattos, conheci-o mais tarde, em uma das minhas visitas. Era ele um jovem escritor iniciante e me impressionou o ardor com que vivia a faina literária. Percebi logo que daqueles matos sairia caça grossa. Pois escrever, segundo lembrou Ernest Hemingway, significa caçar.
Houve, é claro, outros conhecimentos significativos: o inteligente e atualizado Antônio Lopes; a gentil Maria Luíza Nora, uma das musas do Rio Cachoeira; a professora Tica Simões; o contista e romancista Aleilton Fonseca, jovem talento já reconhecido, mestre e doutor em letras, que agora me dá a alegria de  receber-me nesta Casa onde todos o admiram.
Bem, seriam muitas as lembranças. Não quero alongar-me. Assim foi cozido o barro deste que agora vos fala, e melodiosamente,  pela boca da amiga e poeta Ceres Marylise Rebouças de Souza.
O vício da leitura, que ainda carrego, e forte, veio dos longes da infância, do ermo da fazenda de cacau, onde aprendi a conviver com princesas e mendigos, flibusteiros e espadachins, cardeais, malfeitores e heróis de variado calibre. O livro sempre foi o companheiro supremo, graças à mudez que lhe impede traições. Sempre disponível, de humor estável e lições inesquecíveis quanto à perigosa arte de viver.
Muitos escritores acreditaram na autoeducação. Um destes foi Jean-Jacques Rousseau. Outro, Anton Tchékhov. Na literatura brasileira há o caso de Machado de Assis. Espanta-me ainda hoje que, menino de morro e mulato, em época de acentuado preconceito racial, ele houvesse subido na vida, passo a passo e sozinho, até sentar-se ao lado dos deuses do ofício. Aprendiz de tipógrafo, jornalista, cronista, poeta, crítico literário e, sobretudo, contista e romancista, ninguém escreveu melhor, dificilmente alguém o fará. É ele o patrono da Cadeira que me cumpre ocupar. Poderia ser igualmente patrono de todos os autodidatas, ou seja: dos que decidiram encerrar a orientação da escola para iniciar o verdadeiro, para eles, processo de educação pessoal.
Não vai aqui uma crítica à escola, seja básica ou superior. Ela será sempre um guia, um orientador, um disciplinador, mas convém lembrar o brocardo latino segundo o qual  aprendemos não para a escola, mas para a vida – a vida dura, áspera, que Máximo Górki chamou “minhas universidades”; a “raw life” a que se referiu Hemingway; a vida semelhante àquele touro que, no dizer do poeta García Lorca, temos de enfrentar, nem que seja com traje emprestado de toureador; em suma, o “viver é perigoso” de João Guimarães Rosa.
Temos vários casos de autodidatas nas letras sul baianas. Sosígenes Costa, no meu entender nosso maior poeta depois de Castro Alves, aprimorou o dom de que era portador na leitura sistematizada e nas cismas de eremita; Jorge Amado, embora com diploma de advogado, jamais exerceu a profissão, porque preferia ser “doutor em romance”, tal a empatia que o ligava ao povo e suas causas; Adonias Filho abriu estrada própria, para cima, à beira de vertentes, nisso trocando a facilidade de expressão pelas dificuldades de percurso; e Jorge Medauar, o grande contista de Água Preta, e também poeta valoroso, aprendeu a narrar através da leitura, da observação direta e do conhecimento intimo dos temas.
Se um autor vale a pena, o que é uma maneira nobre de valer a si mesmo, haverá o momento em que cristalizará suas potencialidades; em outras palavras, amadurece. Então esse criador verdadeiro escreverá, antes e acima de tudo, para um leitor sem rosto, que poderá resumir-se a si próprio; ou escreverá por lhe faltarem outros dons; ou por fatalidade, expiação, purgação. Escreverá porque sente que essa atividade, tantas vezes de compensação irrisória, traz sentido e lógica à sua vida. Escreverá por não ter à mão outro meio de domar os seus tormentos. Em resumo, ele escreverá cego, às apalpadelas, como disse Henry James.
O reconhecimento, se vier, será um conforto. Os prêmios literários constituem meros e benéficos acidentes de trabalho. A propaganda pessoal terá de ser limitada por força de pudores.
Nesse caso, pouco importará a tal escritor ter os quinhentos leitores previstos por Tchékhov; ou os cem calculados por Stendhal; ou os dez, talvez cinco do defunto autor Brás Cubas.  
O sul baiano é rico em temas que entram pelos olhos e ouvidos, e tem uma paisagem altamente plástica. O sul baiano pulsa de muitos conflitos latentes, que estão a pedir mais imaginário do que conhecimento, segundo receita do sábio Einstein. Então não há mesmo jeito: estamos condenados a escrever ficções e poesias e ensaios.
Mas a empreitada é árdua. A literatura é uma dama caprichosa que exige antes de tudo dedicação plena. Nós, leitores e autores, somos instados a fazer um curso prévio de chevaliers servants. Mesmo assim, e apesar de todos os nossos salamaleques, chegará o instante em que ela insinuará a ruptura. Será preciso um mergulho crítico, vertical, um insight fundo para mudar de tom e de timbre e traçar novas atitudes. A ruptura de Machado de Assis ocorreu a partir do seu quarto romance, Iaiá Garcia, quando ele renuncia aos lances românticos em voga e, indiferente ao naturalismo, abraça o ficcionismo de teor psicológico, descobre a sutil ironia de narradores ingleses e contrai um pessimismo quase funéreo.
Surge, então, mais que o escritor, o ficcionista; mais que o prosador, o narrador; mais que o formulador de enredos, o analista de almas - tarefas a que o velho Machado se dedica com alguma dissimulação perversa nas obras ditas “da maturidade”, que vão de Memórias Póstumas de Brás Cubas a Memorial de Aires, passando por Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó. Paralelamente ele alcançava no conto as alturas de Edgar Poe, Guy de Maupassant e Anton Tchékhov, os pilares mundiais deste gênero hoje tão desfigurado.
Não sou de colecionar glórias, sejam as grandes, que não as tive, sejam as pequenas, que me reacendem o ânimo, mas quero consignar aqui a alegria – mais que o orgulho – de ser incluído pelo então Ministério da Educação e Cultura na Comissão Machado de Assis, incumbida de levantar, na década 60 do século anterior, o texto definitivo da obra machadiana e publicá-lo em edições com estudos críticos.
Senhor Presidente Marcos Bandeira, senhores acadêmicos:
Quando quis declinar, e fui vencido, da satisfação de compor este sodalício, aleguei, a exemplo de Erico Verissimo em relação à Academia Brasileira, que já me considerava uma vaga. Não pensei então na minha obra literária, se me permitem assim designá-la. Revendo-a agora, nas agruras de quem foi jornalista de ponta a ponta, mesmo no exercício de eventuais atividades burocráticas, percebo que também ela, a obra, se completa.
São uma dezena de coletâneas de contos, cinco volumes de crônicas, três romances recentes, um deles pronto para publicação, três de crítica literária e um volume de memórias, a sair, sem contar participações em antologias e obras de parceria. Também ficam ao relento cinco ou seis dezenas de traduções de livros, entre as quais obras de Ernest Hemingway, William Faulkner, Mary McCarthy, Isaiah Berlin, Bertrand Russell, Albert Soboul, Virginia Woolf, Isaac Bashevis Singer.
O decoro me impede de opinar sobre os meus cometimentos. Mestre Graciliano Ramos reagia com palavrões a elogios súbitos, dos quais desconfiava; eu enrubesço fortemente, prática que as donzelas de hoje felizmente ignoram. Quanto ao conto literário, que constitui a minha paixão, já expus teorias em livros, entrevistas e prefácios, nelas incluída a introdução a uma antologia pessoal, Contos e Novelas Escolhidos, a sair ainda neste semestre, em dois alentados tomos, edição conjunta da Academia de Letras da Bahia e Assembleia Legislativa do Estado.
 Aproveito o ensejo para outro comercial: a Fundação Pedro Calmon aprovou para este ano a Coleção Hélio Pólvora, a saber: a reedição conjunta de cinco livros de contos, compreendendo Estranhos e Assustados, Noites Vivas, Massacre no Km 13, O Grito da Perdiz e Mar de Azov, todos com suas respectivas referências críticas.
Nestes volumes e em outros mais recentes há uma reincidência específica de temas, tipos, enredos e paisagens sul baianos  transcritos sob a ótica psicossocial. Prova de que a terra natal e eu nos distanciamos sem nos perder de vista, um e outro algemados emocionalmente ou portando tornozeleiras eletrônicas contra vãs tentativas de fuga.
O tempo ainda não é chegado, ao contrário do que disse o meu compadre Euclides Neto, de Ipiaú, um escritor de pés no chão e alma nas alturas. Mas a hora do balanço se aproxima. Do Deve e Haver dos antigos contabilistas. Juro que não matei, não roubei, não traí – embora me falte a prova conclusiva das gravações sigilosas. Terão de acreditar na minha palavra de ficcionista. Da vida, que é trabalhosa e às vezes bela, lamento apenas a incapacidade de substituir alguns contos literários por múltiplos do antigo conto de réis.
Dito isso, e com sinceros agradecimentos pela atenção dos senhores, me declaro amigo atento, fiel e obrigado – e se não ocupo agora, de corpo presente, a Cadeira 17 é porque nela prefiro ver por enquanto o seu legítimo e vero ocupante Machado de Assis.
Agradeço a presença de todos.