DISCURSO DE SAUDAÇÃO A HÉLIO PÓLVORA, UM MESTRE DA PROSA E DO ESTILO - Aleilton Fonseca




A literatura é uma dama caprichosa que exige antes de tudo dedicação plena. Nós, leitores e autores, somos instados a fazer um curso prévio de chevaliersservants.

Hélio Polvora


     Estas palavras do escritor Hélio Pólvora demonstram, com espírito e estilo, que o ofício da literatura não decorre de um gesto volitivo, mas de uma destinação de vida, como uma espécie de imposição interior, como mister de uma arte que não se doa nem se entrega, mas sempre inquieta e desafia, exigindo permanentemente do escritora perícia do esgrimista baudelaireano, a lutar com palavras mal rompe a manhã, como assinalou Carlos Drummond de Andrade.
     Ungido pela arte, eleito pelos pares. O escritor – em sua plenitude, com obra notável e consolidada – deve ser recebido no recinto simbólico dos que merecem a imortalidade da inscrição no memorial das letras, como tesouro dos coetâneos e herança para os pósteros.
Para conferir honra a esses seres das letras e cultivar o seu legado, as academias se erguem e se impõem,como espaço plural das culturas ao atar os laços entre o intento individual e o ideal coletivo, num círculo representativo dos diversos labores, ofícios e pendores da atividade intelectual e da criação literária. De fato, aos escritores se deve reservar o centro desse círculo de saberes e reconhecimentos.
     Hélio Pólvora de Almeida. Este é o nome heptassílabo que se torna legenda no seio desta memorável Academia de Letras de Itabuna. A caminhada deste homem até a notável consagração em sua terra natal começa em 1928, quando o menino Hélio vem à luz, em pleno reino dos cacauais, crescendo por entre plantios, aceiros, regatos e arvoredos, aos abraços do sol, ao hálito da chuva. E daí saiu aos lugares de perto e de longe, a apascentar palavras, inventar imagens e engendrar enredos.   
Haveria de ser jornalista, pois que alcançou as primeiras letras pelo ensino de sua progenitora, e dando-se ao infante exercício de decifrador de manchetes de jornais. Daí para a estante foi só um pulo de menino, desde as letras primárias, até palmilhar cada um dos livros do acervo familiar.
     A partir de 1942, das brisas dos cacauais às sombras dos casarios soteropolitanos da capital, onde cumpriu bem os estudos secundários, com os sonhos sempre em primeiro plano. O ano de 1947 o reconduziu ao convívio com as origens grapiúnas, com os orvalhos da mata atlântica, e arredores do Rio Cachoeira. E logo surgiu, neófito e predestinado, na imprensa semanal, o exímio jornalista: colaborador e editor de A Voz de Itabuna – e mais adiante correspondente de importantes jornais de Salvador. Inaugurado o caminho, eis os acenos das estradas, os chamados do Sul. Em 1953, o jovem Hélio enxergou entre as colinas pétreas, do Corcovado ao Pão de Açúcar, o vasto mundo de gentes e máquinas, onde assentar seu ofício e sua arte. O Rio de Janeiro continuava lindo e profícuo, mesmo antes da famosa canção de Gilberto Gil. Ali, o curso universitário, em Direito, e início do duplo ofício em um só: o jornalista escritor, o escritor jornalista, tão distintamente caracterizado, cada qual ciente da especificidade e das aproximações de ambos os discursos manejados com talento visceral. E foram trinta anos cariocas, de intensa vida jornalística e literária, – saga que continua, atualmente na Bahia desde 1984, data de seu retorno pródigo, com uma produção tão intensa e marcante, cronistados viveres, aconteceres e pensares, – voz que ecoa na sua geografia afetiva: Itabuna, Ilhéus, Salvador. 
     A aurora do escritor de altíssima pena viria tão cedo como o sinal dos galos. E surge, em pleno terreiro das areias janeirenses, o seu consagrado livro de estreia, Os galos da aurora. E saiu do prelo da prestigiosa editora Civilização Brasileira, no bendito ano de 1958, aquele que um jornalista arguto já afirmou em livro que não devia acabar.  O livro correu o país, com capa e ilustrações expressivas de Barboza Leite. E veio se arranchar, através de alguns volumes, nos entrechos das quebras de cacau e das estantes domésticas. Eu afirmo, porque foi assim – e  não evito registrar – que chegou às mãos da jovem professora Lourdes Santana, no mesmo ano, e, de seu convívio, em 1968 passou às mãos de seu filho de oito anos, por nome Aleilton Fonseca, que – de fiel leitor de Monteiro Lobato, irmãos Grimm e Esopo, – o leu de uma visada, por próprio impulso à estante escassa da casa materna. E o leu, em leitura inesquecível e revisitada, pois foi o primeiro livro de literatura para leitor adulto que conheceu. E o menino encantou-se com as narrativas, mais longas e densas, cheias de atmosfera e presságios, todavia situadas num mundo extremamente familiar. O pequeno leitor reconhecia nas páginas do livro os nítidos traços do contexto grapiúna, como se os contos se passassem nos fundo do grande quintal de sua mãe, onde ele lia à sombra de coqueiros, mangueiras e cacaueiros, à beira de um rio cauteloso e seus belos manguezais. Inesquecível aventura. De fato, como esquecer a tragédia do conto “A velha Joana”, a pobre Vevéia desaparecida entre as chamas que consumiram o seu casebre? A pena do narrador ateava a palavra fogo à palavra casa, – e iluminava a imaginação do leitor em suas primeiras andanças pela prosa de gente grande. A narrativa fluía: “Quando deram fé a casa era uma fogueira grande, de São João, queimando com muita pressa, uma beleza de fogaréu espantando a noite para o mais denso dos cacauais. (...) Os cacaueiros em redor tremiam num choro sem lágrimas”.
     Hélio Pólvora brilhou. Festejado pela crítica, os galos da aurora abriram a Pólvora um rastilho fecundo de contista refinado, senhor da palavra exata, estilista da frase peculiar, aliciador de temas fortes, alquimista da ironia mais fina, do humour mais ácido e gracioso, que soube herdar da botica machadiana. Leitor e parceiro de mestrescomo Edgar Allan Poe, Tchecov, Machado, Maupassant, é dessa estirpe de estilistas e fundadores que faz parte o contista contemporâneo Hélio Pólvora. Fez-se um Mestre que amalgama em sua lavra as qualidades da narrativa curta, conforme as lições de seus predecessores. Ouso afirmar que, com perspicácia, tirocínio e desprendimento, é possível reconhecer e fixar uma contísticaheliana na literatura brasileira. Seu estilo próprio e inconfundível se estende desde a aurora de sua arte de narrar até os arrebóis mais recentes, com a maestria reconhecida, reiterada e confirmada pelos melhores leitores do gênero.
    O lugar relevante da obra heliana confirma-se na trajetória de cerca de vinte e oito títulos, abrangendo crônica, conto, romance e crítica literária, além dapresença em várias antologias nacionais e estrangeiras, com traduções em espanhol, inglês, francês, italiano, alemão e holandês. 
Jornalista, sua crônica atinge a excelência da forma, pelo impacto no leitor, pela clarividência aplicada aos fatos, pela ironia da visão crítica. Semanalmente, nas páginas do jornal A Tarde, podemos meditar sobre seus artigos de opinião e refletir sob os efeitos de suas crônicas lapidares. Escritor, sua crônica extrapola o limite de Cronos, constituindo-se como peças literárias que migram do jornal para o livro, estendendo-se dos hebdomadários para as bibliotecas. No livro Um pataxó em Chicago(1994), lemos belas crônicas de viagens e perquirições pela vida e pelo mundo, de um narrador que tenta compreender e questionar a condição humana, apartir de sua própria trajetória cultural. Na coletânea De amor ainda se morre(2003)temos crônicas saborosas e instigantes pelo insólito das situações, pela linguagem desabusada do narrador, que nos move pelo riso e nos comove pela afetividade para com as personagens.
     Da maestria da crônica e do conto, era de se esperar o advento do romance de Hélio Pólvora. Diz a sabedoria popular, com acerto, que aquilo que tarda vem no caminho. E os romances vieram, em dose dupla de virtudes e caprichos de um prosador intenso e maduro, consciente de todas as flexões do verbo narrar. Seu primeiro romance, Inúteis luas obscenas, veio a nós em 2010 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Um ano depois, encontramo-nos com o romance Don Solidon, escrito em quatro meses, com a maestria de décadas de ofício. São romances que prendem a atenção do leitor, ao oferecer um concerto de vozes e focos narrativos, fazendo jus à polifonia dostoieviskiana, dínamo propulsor do moderno romance ocidental. O cronista, o contista, o romancista: facetas do mesmo talento, da mesma técnica, do mesmo estilista, com efeitos e propósitos estéticos específicos. 
     Como leitor e escritor, confesso que nutro predileção pelo livro Os galos da aurora (1958) por sua grandeza inaugural, revelando o grande escritor que surgia no conto brasileiro; e pela epifania inaugural do leitor que surgia em mim, para tornar-se um dia escritor e professor de literatura. Em 2003, quarenta e cinco anos depois, vem a lume outro livro de minha predileção, a obra-prima intitulada Contos da noite fechada, um dos mais felizes lançamentos da Editus – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, então sob o comando insuperável de Maria Luiza Nora. Sobre este livro, que admiro e recomendo, tive a oportunidade de externar minhas observações de leitura.
     Eu afirmei e sustento que “Pólvora é um contista que não abre mão do enredo bem delineado, nem exercita experimentalismos inócuos. Percebe-se que sua formação vai desde os clássicos, passando pelos grandes contistas modernos, com destaque para o nosso Machado de Assis, até os contemporâneos que renovam o conto mas sem o levar à descaracterização formal.
     Após ler sua obra com cuidado, destaquei: “Hélio Pólvora opera a síntese perfeita do modo definido da narrativa clássica com os efeitos narrativos modernos que resultam do manejo do foco narrativo, em que o narrador não apenas conta a história, mas o faz consciente de que a grandeza do gênero curto reside na forma mesma de narrar. Expressivo elemento de composição, as surpresas, súbitas revelações, revigoram o enredo e fazem parte da própria concepção da narrativa. Elas enredam estrategicamente o leitor e dão fôlego ao texto, além de motivarem o próprio autor em seu trabalho de ficcionista”.
E também afirmo que “em cada conto de Pólvora, o narrador conduz os passos da trama com intimidade, senhor dos fatos, dos enredos e dos desfechos, na dosagem exata, com andamento bem ajustado. Seus contos são exemplos de técnica, de adequação, de ritmo, de marcação temporal e de jogo dialógico. Neles as informações se adensam num movimento contínuo, concentrando sentidos para instaurar efeitos de leitura e de compreensão, como fluxo revelador que impressiona e provoca a reflexão”.
     Por tais feitos, o nome e a fama se amoldam. E o escritor grapiúna se viu merecedor de láureas e honras. Recebeu duas vezes o Prêmio Bienal Nestlé de Literatura: o de 1982, pelo livro de contos O grito da perdiz, coletânea de contos memoráveis pela fatura estética; e o de 1986, para o admirável Mar de Azov, com um belíssimo conto-título, insuperável na leveza que imprime à difícil relação pai e filho. Antes, recebeu os prêmios da Fundação Castro Maya, para o livro Estranhos e assustados, e Jornal do Commercio, para Os galos da aurora.
     Entre as honras, avulta o título de Doutor honoris causa outorgada por nossa querida Universidade Estadual de Santa Cruz, onde sua obra costuma ser estudada e sua voz ouvida com admiração, em eventos tempestivos e fecundos.
     A Academia de Letras da Bahia lhe deu por assento de imortalidade a cadeira 29, para agradável convívio com os seus pares, que o leem e o admiram pela representatividade baiana de sua obra no panorama da literatura nacional. Na Academia de Letras do Brasil, sediada em Brasília, ocupa a cadeira 13, lugar de sorte sob o patronato de Graciliano Ramos. Havia de ser profeta em sua terra, mudando a ironia dos ditados populares. E então, eis que Hélio pertence à Academia de Letras de Ilhéus, situada em rua vizinha a de Gabriela Cravo e Canela e próxima a do jovem Jorge Amado e Sosígenes Costa.
     A Academia de Letras de Itabuna, ao erguer-se em recente fundação, outorgou-lhe a cadeira que o dileto filho da cidade inaugura, transmitindo-lhe a energia de sua obra, o seu brilho, a sua personalidade. A cultura grapiúna festeja seu filho: escritor, jornalista, tradutor, editor, ensaísta e crítico. Mais que isso, um homem de sua terra, desde o início e agora e sempre: um autor itabunense, grapiúna, baiano, brasileiro e universal. O escritor e jornalista Hélio Pólvora, o homem que lavra a terra com palavras, nos plantios da fazenda das letras.


Aleilton Fonseca
Salvador e Ilhéus, 18 e 19 de abril de 2013.