FÁBULA DO HOMEM OBSTINADO - Hélio Pólvora


Fábula do homem obstinado

*Hélio Pólvora

Conheci um homem obstinado. Tinha perdido a casa na grande enchente do rio, que costumava escorrer manso nos fundos do seu quintal – mas em poucos dias, na época das chuvas grossas, enfureceu-se, inchou o ventre e alargou a mandíbula. A enxurrada levou casas, afogou mulheres e crianças.  Quando o tempo clareou, o homem se viu exposto, sem teto, sem paredes. Deitara-se para dormir, acalentado por vago marulho sob o assoalho do quarto; dormira atropelado pela vaga certeza de que as águas avançavam por entre juntas e frinchas na madeira e reboco.  De fato, o rio esmurrava de punhos cerrados a estrutura já carcomida. O homem despertou ainda cheio de sono invernal, bocejou e nada disse.
As pedras em que as lavadeiras batiam roupa estavam cobertas de lama e detritos, enquanto as baronesas passavam, imperiais e imperiosas, nas suas verdes coifas sobre pedaços de terra arrancados aos baixios. Desciam morosas para o estuário. O homem obstinado apareceu de calção à porta, da qual restavam duas traves tortas, e quando os olhares convergiram para ele, quando todos cessaram os afazeres caseiros e se puseram a olhá-lo em muda indolência, ele entrou no rio, nadou até o meio da correnteza e ali opôs o peito, como um dique, à enchente. Meia hora depois retrocedeu à ribanceira, encarou homens e mulheres e lhes falou, apontando o rio:
— Nem ele nem eu.
Tempos esses em que a cidade era um arruado à beira do rio por onde passavam matutos tangendo burros e os cascos dos burros arremessavam para os lados lâminas finas e espelhantes de lama; tempos igualmente obstinados em que o homem galgou uma colina onde rareavam casas e ali construiu com pedras e blocos de piçarra o seu castelo. Por mais que subisse, o rio jamais poderia farejar em volta; tranquilo, em segurança, o homem obstinado poderia  progredir, juntar dinheiro, fundar uma dinastia, assestar uma luneta para as estrelas, consultar almanaques e saber qual a melhor época do plantio e da poda.
Mas a velhice lhe devolveu a antiga insegurança, aquele temor que o tempo apenas embota – e mais do que a velhice devem tê-lo preocupado as notícias de desmandos da natureza no Vale do Açu, nos campos do Rio Grande do Sul, no Paraná, no Japão e Tailândia, nas encostas de Nova Friburgo: avalanchas em áreas montanhosas, rios de nomes difíceis que crescem e alagam planícies, a terra que em apenas um segundo estremece e racha e sepulta, o vômito ardente do vulcão. E o velho, a passear nos beirais da sua fortaleza, voltou a investigar o rio que de novo ameaçava subir, acompanhou o regime das águas e lhes sondou a coloração, tentando nelas descobrir vestígios de terra arrancada às cabeceiras. Com certeza acompanhou o solene desfile das baronesas, o ímpeto das primeiras correntezas túrgidas. E é possível que despertasse de madrugada, pensando ouvir à porta o sussurro das águas, julgando escutar a mão do rio na aldrava.
Visto de longe, o castelo na encosta parece gravura antiga: janelas altas e estreitas, beirais, paredes de pedras e um mirante. Dizem que havia um telescópio no mirante; dali, o homem obstinado aproximava a lua nas noites de plenilúnio; dali observava o rio palpitar, intumescer e lamber as ribanceiras nas temporadas de inundações.
Suponho que ele há de ter passado noites inteiras, nos seus últimos anos, a velar. Ignoro se ainda vive, e às vezes eu o imagino a perscrutar na noite fechada qual tempestade de breu a pulsação próxima de águas barrentas, a ouvir o tropel amortecido das águas subir a colina para o assalto. É provável que tenha soltado dentro da noite uma risada de escárnio ao ouvir o rio parar ofegante e exaurido a poucos metros do portão de ferro trançado. E na manhã seguinte, carregada de nuvens de chuva, ele abre uma janela e vê que o rio lateja, na ânsia de nova investida.
É claro que o arruado se transformou em vila, a vila adquiriu foros de cidade e esta, a estender os tentáculos, acabou por envolver e sufocar o castelo. O homem obstinado se teria fechado como um recluso? Ou, perdido na insensata multidão anódina, despojou-se de todo o carisma? Não sei. Sei apenas, ou melhor, pressinto que ele, ainda obstinado, deve rir-se às escondidas das previsões dos maias, Nostradamus e outros visionários sobre o final dos mundos e dos tempos. Para ele, que tem peito largo e enfrenta correntes, não haverá apocalipses. Pois na sua obstinação cega de Lancelot do Lago, ou do argonauta Jasão, aquele homem, se preciso for, haverá de recolher as pedras soltas do castelo, a inútil aldrava, o telescópio e a obstinação, e com eles partir à procura de chão mais alto em que fincar novos alicerces.
Eu que o conheci na juventude, e o situei acima dos super-heróis das histórias em quadrinhos, em força, coragem e determinação, convenci-me afinal de que existem castelos inacessíveis. Basta construí-los em lugar seguro e ter um óculo de alcance para não perder de vista as imediações – que são as fronteiras do infinito.



*Hélio Pólvora é escritor, jornalista, contista, membro da Academia de Letras de Itabuna, da Academia de Letras da Bahia, da Academia de Letras de Ilhéus e da Academia de Letras de Brasília.