RUY PÓVOAS - AGRADECIMENTO: COLÓQUIO KÀWÉ



Ancestralidade


UESC - NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BAIANOS REGIONAIS ‒ KÀWÉ
Colóquio Kàwé: narrar a afro-brasilidade
Falando de Ruy Póvoas: conversas em torno da vida e da obra
Atividade comemorativa aos seus 70 anos.
9 de maio de 2013


         Pessoa alguma completa 70 anos impunemente. No decorrer deste tempo, a Terra passou 70 vezes pelo mesmo lugar em sua rota em torno do Sol. E por 26.740 vezes, ela fez um giro completo em torno de si mesma. Se o coração adulto de um humano bate cerca de 37 milhões de vezes por ano, isso significa que meu peito foi espancado por cerca de 2 bilhões e 590 milhões de vezes até agora. Isso, sem levar em conta as vezes sem conta em que ele se acelerou, porque tive medo, angústia, alegria, surpresa, susto, prazer e dor. Por sua vez, enquanto a Terra deslizava em seu caminho e meu coração batia, respirei 693.100.800 vezes. É claro que não estou considerado os 23 anos em que sofri de asma, e as vezes que o chão me sumiu dos pés. E o consumo de oxigênio? Nem ouso calcular. Sei que, para subir escadas, o humano consome 1.100ml de oxigênio por minuto, e eu passei a vida profissional toda aqui, neste campus, subindo e descendo as escadas dos pavilhões. Daí, a minha dívida para com o Universo que me forneceu esse combustível gratuitamente é simplesmente impagável. Mas vamos parar com esta conversa, pois se o Governo souber disso, vai nos taxar no ar que respiramos, pois pelo chão em que pisamos, ele já nos cobra preço de sangue, até mesmo pela sepultura onde descartam nossos despojos.
         Ah, por que semelhante preocupação? Uma vez que me dou também aos desvarios do verso, por que não um poema? Acabo de escrevê-lo. O título? Ora: PREOCUPAÇÃO.


                         De repente, a vertigem,
o corpo leve, querendo vencer
a gravidade:
o amor de Maria,
o pão de cada dia,
a tristeza aniquilada
pelas ondas da alegria.
Ah, viver assim:
sem estupor,
sem agonia,
sem ameaças,
sem maresia.
Será assim,
algum dia?

         É isso: a preocupação é eterna aliada da quimera. Esta é gerada pelo sonho. Aquela se sustenta da impossibilidade de tornar o sonho realidade. Mas é compulsório “quimerar”. Eis um verbo novo: acabo de inventá-lo. E de tanto tentar aprender como lidar com a preocupação, por mim considerada subproduto da quimera, me volto para a minha ancestralidade e ouço meus parentes me ensinando, naquela infância que já vai tão longe. Trata-se de um itan, isto é uma história nagô, intitulada A lonjura e a demora.

Contavam os mais-velhos que, tempos depois da criação do mundo, Olorum andava querendo saber como os humanos entendiam o espaço no tempo e o tempo no espaço. Tinha que escolher um embaixador de tarimba: firme, decidido, paciente, profundamente observador e, principalmente, que soubesse aguardar sem dar um vacilo. Ninguém melhor do que Iroco, o Mestre do Tempo. Dito e feito: Olorum mandou e Iroco veio ao Iluaiê, a terra da vida, para descobrir o que Olorum queria saber.
Iroco recebeu ordens de procurar a aldeia mais antiga e conversar com Iroju, que era o morador mais velho do lugar. Procura daqui, procura dali, e ele terminou tendo informações sobre a aldeia, onde ele podia encontrar Iroju, o morador mais velho entre os mais-velhos da Terra. Depois de dias procurando, Iroco encontrou um homem que tinha uma boa informação. Iroco, chegou, bateu palmas e o homem veio atender. Terminou dizendo assim:
− Ah, moço, eu estou muito contente hoje. Um filho meu que está ausente há muito tempo vai chegar daqui a três dias. Logo, logo, ele vai estar aqui e o tempo é muito curto para eu tomar as providências que quero.
O homem conversou muito e animou Iroco a prosseguir. Disse que a casa do velho ficava perto dali e indicou a direção.
Iroco agradeceu e se despediu. Andou muito, até que precisou procurar outro informante. Terminou encontrando outro homem, que pouco conversou. Apenas disse o seguinte:
− Ah, moço, eu estou muito preocupado com a ausência de um filho meu. Olhe, ele saiu tem uma hora e ainda não voltou. Eu não aguento mais essa demora. Tanto que eu queria saber em que lonjura ele está...
Iroco ficou por ali, olhando o mundo, esperando pacientemente, para colher mais alguma informação. Mas o homem continuava amuado e não adiantou puxar conversa.
Para se ver logo livre da visita, o homem informou:
− Dizem que a casa do velho que o senhor procura fica para as bandas de lá... Mas é muito longe. Mas muito longe mesmo...
E apontou na direção a ser seguida. Iroco se despediu agradecido e se pôs a caminho. Para sua surpresa, logo depois da primeira curva da estrada, avistou a casa do velho, embora tivesse recebido a informação que a casa ficava muito longe. Andou só um pouquinho e foi logo chegando aonde queria.
Mas antes de se aproximar da casa de Iroju, Iroco resolveu descansar um pouco para pensar. Sentou-se numa pedra, debaixo de um arvoredo e ficou pensando sobre tudo o que viu e ouviu, naquela tão longa e, ao mesmo tempo, tão curta viagem. E ele terminou concluindo que nem precisava mais conversar com Iroju, pois já sabia a resposta para ser dada a Olorum: A lonjura e a demora têm o tamanho da preocupação.

Lonjura e demora preocupam, produzem ansiedade, porque ocidentalmente não sabemos lidar com o tempo. A respeito disso, também vale os ensinamentos de Cícero, o grande orador romano: “Com o tempo, todas as coisas mudam. E nós mudamos com elas.” Aí, no entanto, um outro obstáculo se nos apresenta. É próprio da natureza humana ter ânsias para mudar o que se considera indesejável, ao tempo em que se investe eternidades de libido na tentativa de se conservar o que nos dá prazer, contentamento e alegria.
E outra vez, a preocupação tem motivos de sobra para sair vitoriosa. Na busca de uma saída possível, é necessário lançar mãos da sabedoria dos santos de Deus. E é Jesus Cristo quem nos fala nas palavras de MATEUS, 6: 34. “Não vos preocupeis pelo dia de amanhã. O dia de amanhã terá suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado.”
Então, que eu fique com o cuidado do meu dia de hoje: fazer 70 anos e me despedir do convívio de vocês. Rói e dói, assim, assim. Só me resta, então, agradecer e garantir a vocês que levo comigo uma oceânica e netuniana saudade. Afinal, já se disse que saudade é tudo que fica daquilo que não ficou. E porque ainda não inventaram palavras que melhor traduzam o meu eterno agradecimento e o penhor de minha gratidão, reafirmo: muito obrigado!