LENDO COM TODOS OS SENTIDOS
"Lê-se com os olhos, e também com o olfato, com o
paladar, com o ouvido, com o tato. Com todo o corpo e não só com as partes
“altas” privilegiadas pela hierarquia dos sentidos impostas pela tradição
metafísica: os olhos e a mente […]. A tarefa de formar um leitor é multiplicar
suas perspectivas, abrir suas orelhas, afinar seu olfato, educar seu paladar,
sensibilizar seu tato, dar-lhe tempo, formar um caráter. O único que pode fazer
um professor de leitura é mostrar que a leitura é uma arte livre e infinita que
requer inocência, sensibilidade, coragem e talvez um pouco de mau humor." NIETZSCHE
Quando vemos um livro, dependendo do grau de
intimidade com esse objeto, podemos bocejar, espirrar, suspirar. Mas a atitude
majoritária é ignorar, pois o livro não está no imaginário do povo brasileiro e
não faz parte do sonho de consumo da população.
Os fatores são muitos para afastar o leitor do
livro: falta de bibliotecas públicas bem equipadas, poucas livrarias no país,
inexistência de programas na TV, rádio, internet que ajudem a formar leitores,
livros com preços astronômicos e principalmente carência de mediadores de
leitura que compreendam a Literatura como uma arte.
Ler é uma atividade muito complexa e desenvolver o
prazer da leitura, normalmente entendido apenas como entretenimento, não é uma
tarefa fácil, pois requer conhecimento de autores, estilos e gêneros
literários. Mas só isso não basta, se o mediador não tiver assimilado que a
leitura precisa colocar em ação todos os sentidos humanos.
TATO
"É preciso ler com dedos delicados, mesmo que às
vezes seja necessário ler com os punhos." NIETZSCHE
O tato sempre foi um sentido coberto de pudor e
preconceito. As dificuldades com o próprio corpo se refletem na relação com o
outro. Ele é instintivo, não racional, tanto que é o primeiro sentido
desenvolvido no feto, que reage ao estímulo dentro do útero. E quem estuda o
assunto diz que é o mais social dos sentidos humanos, pois dá a dimensão das
coisas, refletindo o que vem do nosso interior. Basta lembrar da pele arrepiada
ao ouvir uma declaração de amor. Porém, cada vez mais a sociedade vem colocando
esse sentido em segundo plano, nesse novo mundo virtual.
Para a leitura isso é um paradoxo, pois o ato de
escrever começa a existir através dos dedos, seja na escrita à mão ou na
digitação.
Já para o livro é o sentido que promove a primeira
ação educativa que fazemos com as crianças ao ensiná-las a virar as páginas,
apurando a sensibilidade de seus dedos. Ato que se repetirá e refinará ao longo
da vida. Também a falta de intimidade com o livro se mostra
pelo tato, quando observamos alguém que não sabe de que maneira segurá-lo. E sua relação é tão profunda com a leitura que
possibilita ao cego o acesso à literatura, através do método Braille.Só que é difícil encontrar nos livros imagens
táteis descritas. Há visuais, auditivas, olfativas, mas raramente gustativas e
táteis. E são as imagens que ajudam a construir lembranças.
Que tal associar o tato a memória?
Vamos imaginar que estamos numa livraria,
caminhando pelos corredores à busca da seção dos livros que nos interessam,
encontramos a prateleira, vemos as lombadas dos livros, letras variadas, cores
diferentes. Fechamos os olhos e passamos as mãos pelos livros. Uma textura
chama a nossa atenção. Pode ser áspera, lisa, aveludada. Puxamos o livro. Será
leve ou pesado? Grande ou pequeno? Fino ou grosso? Está estabelecido o contato.
Deveríamos considerar o objeto livro como um corpo
que se toca. Tateá-lo, sentir a estrutura de suas páginas, criar intimidade com
sua forma, manuseá-lo. Essa é uma boa maneira de começar um tórrido caso de
amor.
VISÃO
"Nascidos para ver, educados para
olhar." GOETHE
Os olhos são os grandes manipuladores dos sentidos,
pois com eles vemos e compreendemos o mundo. Vamos decifrando os códigos e
construindo juízos, percepções.
E é a visão que faz o primeiro contato com o objeto
livro. Começamos observando a letra, as imagens, o projeto gráfico. Podemos
apreender várias informações que ajudam a descobrir o tipo de leitura que vamos
encontrar: capa, lombada, orelha,... Quanto a desvendar num objeto que a
principio víamos apenas uma história!
Mas os olhos também mentem e podem nos atrair para
um livro apenas pelo seu aspecto visual ou nos afastar pelas quatrocentas
páginas que contem. E a única possibilidade de saber se estamos enganados é
conhecer seu conteúdo. No entanto, essa aproximação também pode ser periférica
ou intensiva. E assim se define um leitor ou um momento de leitura que vai
variar dependendo do material que temos em nossas mãos.
Talvez o grande avanço e a maior dificuldade seja
aprender a ler com olhos de leitor e escritor. É importante distinguir esse
duplo olhar, pois quem lê só como leitor, que não é algo ruim, fica num nível
primário de leitura. É fácil detectar a falta da experiência leitora pelos
conhecidos e primários julgamentos: gostei muito do livro, achei interessante,
não gostei. Mas isso não é suficiente.
Para o pesquisador espanhol Victor Moreno é
fundamental ler também como escritor: “Quem lê como escritor se verá obrigado a
disciplinar seu olhar de um modo mais intenso, detendo-se naqueles aspectos que
podem levá-lo a melhorar sua competência comunicativa, linguística e sua
educação literária”.
OLFATO
"Mas também temos que saber cheirar as palavras,
sermos capazes de captar seus aromas mais voláteis e mais dispersos. Saber
distinguir o tipo de odor que as impregna: o cheiro de incenso, o cheiro de
quartel, o cheiro de colégio."
NIETZSCHE
Nas primeiras semanas de vida, as imagens e os sons
necessitam de significado e são os cheiros e o tato os principais estímulos que nos
comunicam com o mundo. Mesmo assim o olfato sempre foi considerado um sentido
modesto, de pouca importância, mas é o primeiro e último canal de comunicação
com o meio externo, basta lembrar que quando nascemos é o ar que entra em
nossos pulmões que promove a primeira manifestação de vida: o choro. E quando
morremos, damos o nosso último suspiro.
O cérebro tudo cheira, por isso o olfato está
sempre carregado de lembranças: o bolo de chocolate da casa da avó, o perfume
do primeiro amor, o cheiro da terra molhada depois da chuva... É o olfato que nos põe em contato com os aromas
desprendidos pelos diversos componentes do livro, aspirando o frescor da tinta
que vem de um livro novo ou o cheiro rançoso exalado por antigos exemplares. E
sem muito esforço podemos associar nossas leituras também a muitas fragrâncias
ou adjetivos olfativos: mentolado, floral, resinoso, doce, ácido, amargo,
salgado, asfixiante, imundo, agradável, excitante, refrescante, delicioso, balsâmico, penetrante...
Um mediador de leitura deve indicar livros com
perfumes embriagadores, mesmo tendo a consciência de que não existe um bom
olfato para os livros como existe para os negócios, principalmente se chegarem
a leitores com narizes resfriados.
AUDIÇÃO
"É preciso saber captar o timbre com o qual o livro
fala, porque cada espírito tem seu som. Há livros que falam baixo e livros que
falam alto, livros de tom grave e de tom agudo e também poderíamos
acrescentar: livros que soam secos e sincopados como ordens militares, melífluos
e ameaçadores como prédicas religiosas, confusos e mentirosos como mitenes
políticos, falsos e ocos como tagarelices publicitárias." JORGE LARROSA
A audição é o segundo sentido a se desenvolver no
ventre materno sendo precedido apenas pelo tato. Na 21ª semana de gestação
entra em ação uma bela aventura sonora: o músculo cardíaco produz a pulsação
rítmica, o estômago e os intestinos produzem sons audíveis até fora do corpo. Gravações intra-amnióticas detectaram que de todos
os sons a que o feto está exposto o que se destaca é o som da voz humana. Com
isto deduz-se que o feto humano ouve a voz da mãe e dos próximos a ela, nas
suas características particulares de ritmo, entonação, variação de frequências
e timbre. O bebê em gestação ouve a voz, mas não a palavra. Responde aos ruídos
bruscos sobressaltando-se e fica imóvel ante uma voz suave ou uma música tranquila.
Ao nascer, quando os órgãos sensoriais ainda estão imaturos, o bebê ouve
perfeitamente.
Portanto no nascimento podemos começar a
desenvolver a Leitura de ouvido termo usado pelo professor Ezequiel
Theodoro da Silva, da UNICAMP, ao se referir ao ato de contar histórias.
Narrar histórias ficcionais, de família, inventadas
na hora é a primeira estratégia eficaz de promoção de leitura. Todos que
tiveram a oportunidade de ouvir relatam como uma experiência inesquecível. Mas
é claro que isso não é suficiente se não fizermos a ponte com o livro. E aí a
arte de narrar pode se repetir pela vida, pois o ouvinte entenderá a
importância das duas ações: contar e ler.
Afinal o livro não produz ruído por si mesmo, onde
são colocados ficam à espera de um leitor. E quando são abertos e lidos surgem
as vozes do narrador, dos personagens, fazendo com que muitas vezes o leitor
acredite estar vivendo a aventura daquele protagonista.
Existe um ditado que diz: não há pior surdo que
aquele que não quer ouvir. Aplicado este refrão à relação que se mantém com os
livros, encontramos certas consequências práticas. Do mesmo modo que se diz que
não há livro tolo do qual não se possa extrair alguma ideia inteligente, assim
se chega à conclusão que em qualquer livro uma pessoa pode ouvir/escutar não só
o que lhe agrada.
PALADAR
"Um grande número de livros faz perder
o gosto de lê-los e mata o prazer."
NIETZSCHE
Quando crianças, detestamos os sabores amargos,
desconfiamos dos ácidos, aceitamos os salgados e sucumbimos aos doces. Já
adultos abusamos dos salgados e dos doces, apreciamos os ácidos e toleramos os
amargos. Os gostos mudam com a idade e evoluem. As viagens, a variedade dos
acontecimentos, temperam o sentido do paladar que ganha novos matizes de acordo
com a experiência.
A palavra gosto pode se referir ao sentido
localizado na língua e as sensações que se experimentam com o dito órgão e
também pode se relacionar com a estética. Por gosto estético se entende essa
maneira de sentir e de julgar que temos das coisas e das pessoas.
Os textos que nos oferecem podem ser triturados de
mil e uma maneiras porque os objetivos da leitura são múltiplos e variados, mas
dizer de uma obra que “gosto ou não gosto” é, certamente, um pensamento tão
profundo que não diz nada.
Claro que dizer “gosto”, é algo fundamental para
decidir se continuo ou paro de ler um livro. Mas esse vislumbre do gosto só
servirá a mim e aos outros, se ao mesmo tempo me pergunto por que. Desenvolver o gosto pela leitura será mais fácil se
tivermos livros diferentes para os destinatários, pois à medida que crescemos
vamos ficando mais exigentes com tudo que nos rodeia. Assim como os sabores, ao
longo da vida, vamos descobrindo autores, gêneros, estilos e níveis de
degustação leitora (pessoal, interpretativa e crítica).
Nietzsche sustenta que a arte da leitura está
relacionada com o sentido do gosto e com a saúde da digestão. Ler é comer bem:
saber escolher os livros que estão em harmonia com a própria natureza e
rejeitar os outros; ler livros variados, ler com prazer e frugalidade,
assimilar o essencial e esquecer o resto. É preciso tomar a leitura como algo
que aumenta a própria força, dedicar-lhe o tempo justo.
Os livros são valorados pelos seus efeitos sobre o
gosto e há, portanto, livros doces e amargos, picantes, saborosos, ácidos,
insípidos, frescos, de digestão leve ou pesada, livros que dão nojo ou que não
é possível tragar. Há pessoas que são o que comem, outras, por essas mesmas
razões, provam que são o que leem.
POR ONDE COMEÇAR
Essa é uma escolha individual, mas que deve vir
acompanhada de um sentido que metaforicamente ajuda a todos na travessia da
vida. Trata-se do humor que possibilita a reflexão, alivia as tensões e nos
difere dos outros animais, já que “o homem é o único animal que ri”.
Então, que a partir desse momento cada um abra as
comportas dos seus sentidos e olhe, ouça, toque, saboreie e cheire um
inesquecível livro. E siga os conselhos de Jorge Larrosa que alerta para a
conveniência de afastar os "livros pregadores que correspondem aos
leitores crentes" estimulando o leitor a procurar "os livros que
contam e os leitores que importam".
Bibliografia:
- MORENO, Víctor. Leer con los
cinco sentidos. Pamplona: Pamiela, 2003.
- LARROSA, Jorge. Nietzsche & a Educação.
Tradução de Semíramis Gorini da Veiga. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.