MEDIDA PROVISÓRIA CONTRA A SAÚDE - Sônia Maron



                                         MEDIDA  PROVISÓRIA  CONTRA  A  SAÚDE
                                                            Sônia Carvalho de Almeida Maron *

            A evolução do homem, da idade das cavernas  até nossos conturbados dias, passou pelo Direito em todos os milênios e séculos. As sociedades mais primitivas criaram regras obrigatórias destinadas a garantir  a convivência social, o que é incontestável segundo as provas existentes na História, na Antropologia, na Sociologia e na própria História do Direito. Presume-se que todo brasileiro conheça os Dez Mandamentos e os mais curiosos não ignorem que os romanos afirmavam que ubi societas, ibi jus, ou seja, onde existe a sociedade, existe o direito. E não podia ser diferente se “um direito justo faz parte do sentido do mundo”, nas palavras de Karl Engish, - em seu livro Introdução ao pensamento jurídico – leitura que nas primeiras páginas faz lembrar a posição do leigo, diante do Direito, de ordinário priorizando outros aspectos da cultura como a poesia, a arte e a música, preterindo a ciência jurídica. Adverte, no entanto, (lembrando Max Weber), que podem existir “pessoas que vivem sem qualquer ligação íntima com a poesia, a arte e a música” às quais o sociólogo e jurista alemão (1864/1920) denomina “pessoas religiosamente amusicais”. O pensamento de Max Weber, citado por  Karl Engish, serve para provar que não existe pessoa alguma  vivendo neste mundo que não esteja sob o comando do Direito e não seja por ele permanentemente conduzido e afetado, mesmo que o indivíduo  viva dissociado de outros aspectos da cultura.  O homem nasce e cresce no seio da comunidade e jamais vive à margem do grupo social ao qual pertence, a não ser nos casos anormais de psicopatias, quando se desliga do mundo.  Ainda assim, é a regra de Direito que o identifica como “inimputável”, criando meios e procedimentos adequados destinados  a orientar seu afastamento, para evitar prejuízos maiores ao próprio desajustado e ao meio social. Nesses casos,  e em inúmeros outros, atuam juntas as duas ciências: Direito e Medicina. A sobrevivência da sociedade depende da estreita ligação, apoio recíproco, caminhada lado a lado do Direito e da Medicina, irmanadas na defesa da vida,  da liberdade, da ética, da moral, da ordem, da igualdade, da fraternidade, do amor e respeito ao semelhante. E muito mais, que os leigos, despertando,  poderão enxergar.
            Não precisa ser um jurista, como Miguel Reale Jr. (ex-ministro da Justiça, entrevistado pela revista Veja, ed. 2330,17.07.2013), para  entender que os dois anos de trabalho para o SUS, decorrentes do prolongamento do curso de Medicina para oito anos, não são, nem de longe, uma complementação da formação médica similar à residência em hospitais-escola. Para tranquilidade dos inquilinos atuais do Planalto, o Hospital Sírio Libanês,em São Paulo, jamais receberia esses estudantes em seu elenco de estrelas de primeira grandeza. Até aqueles que, por conveniência, preferem continuar cegos, percebem que se trata de uma medida surrealista, mera obrigação de prestação de serviços de clara inconstitucionalidade, visível até aos olhos dos que não tiveram, por descaso do poder público, as luzes do saber, graças às mazelas e deficiências da educação pública,  por se tratar de medida que afronta o livre exercício da profissão, violenta, portanto, a própria Constituição. Não precisa ser um jurista portador do equilíbrio e sabedoria de  Carlos Ayres de  Brito, para definir “poder constituinte” e “poder constituído”, distinção que teve o cuidado de fazer quando se manifestou sobre o “finado” plebiscito. Enfim, as afrontas são dirigidas ao povo brasileiro, atingindo todas as camadas sociais, principalmente aos beneficiários das “bolsas” e “ projetos” que são  lançados no mundo das abstrações e nas filas do SUS e seus hospitais.  Não sou paciente das celebridades do Hospital Sírio Libanês, que conseguem driblar a morte, mas sobrevivo sadia e feliz com a assistência da Santa Casa de Misericórdia de Itabuna e do Hospital Aliança, em Salvador, graças ao plano de saúde que os magistrados pagam, descontando em seus vencimentos, como prova o contracheque. Tenho amigos médicos  e médicos amigos, dignos, competentes e comprometidos, que encaram a Medicina como compromisso com suas próprias consciências, à qual prestam contas no dia a dia.
            Dizem que o “gigante acordou do berço esplêndido” onde dormia. Será ? Parece que ainda está na fase dos  alongamentos próprios do primeiro momento do despertar, ou seja, espreguiçando-se. Urge despertar !  Basta ao brasileiro em geral e à sociedade organizada (leia-se redes sociais) lembrar que um país não se governa com índices de popularidade conseguidos por discutíveis pesquisas de opinião, a serem manipuladas por marqueteiros e “grupos de emergência”,   saídos nem Deus sabe de onde, para definir e aconselhar os projetos de  poder,  saídos da abstração, para consolidar o calvário do povo.
            Invoco, neste momento em que o Direito e a Medicina são chamados à colação, exatamente neste Brasil que tem como símbolo o céu azul, pontilhado de estrelas envolvidas pela mensagem de “ordem e progresso”, as palavras do outro Miguel Reale, pai do jurista citado, nas suas Lições preliminares de Direito, 25. ed., 2000, p. 5:
Há, portanto, em cada comportamento humano, a presença, embora indireta, do fenômeno jurídico. O médico, que receita um doente, pratica um ato de ciência, mas exerce também um ato jurídico. Talvez não o perceba, nem tenha consciência disso, nem ordinariamente é necessário que haja percepção do Direito que está sendo praticado. Na realidade, porém, o médico que redige uma receita está no exercício de uma profissão garantida pelas leis do país e em virtude de um diploma que lhe faculta a possibilidade de examinar o próximo e de ditar-lhe o caminho para restabelecer a  saúde; um outro homem qualquer, que pretenda fazer o mesmo, sem iguais qualidades, estará exercendo ilicitamente a  Medicina. Não haverá para ele o mesmo manto protetor do Direito; ao contrário, seu ato provocará a repressão jurídica para a tutela de um bem que é a saúde pública. O Direito é, sob certo prisma, um manto protetor de organização e de direção dos comportamentos sociais.”
            Precisamos acordar para a realidade única e cristalina: a saúde pública é um bem tutelado pela Constituição e a vida é o bem maior, prioridade protegida pela lei disciplinadora das condutas no processo de interação social. Não é por acaso que nosso ordenamento jurídico repudia formalmente a pena de morte, que se insinua entre nós dissimulada pela indiferença e negligência dos dirigentes escolhidos pelo povo, no trato com os problemas recorrentes da educação, saúde e segurança.
            Que o Brasil saiu dos trilhos, ninguém pode ocultar. A tragédia maior é que, atropelando a Constituição ao fingir ignorar os preceitos da lei magna que rege nossos destinos, fingindo surdez quando as vozes de juristas, cientistas sociais e economistas inspiram a “voz  das ruas”, é forçoso admitir que não somente saiu dos trilhos, está completamente descarrilado.
            Acrescente-se, ainda, que o vice-presidente, bacharel em direito e professor de Direito Constitucional com livros publicados, com certeza passou a lição antiga aos alunos. O ex-aluno não esquece o bom professor e muitos certamente perguntarão: mudou o Direito ou mudou  a visão do intérprete?

*Membro da Academia de Letras de Itabuna - ALITA