O homem e a barba do homem
Antônio Lopes*
A já um tanto
prateada barba do professor Jorge de Souza Araújo esconde um dos nomes mais significativos
da literatura produzida no Brasil. Não por coincidência (Jung diz que não
existe coincidência, existe sincronicidade), é uma barba que nos lembra o muito
citado e pouco lido Karl Marx: Jorge é militante marxista e, nesta condição,
arriscou-se a ter as unhas arrancadas – ou ser submetido a pau-de-arara, choque
elétrico, afogamento e mimos outros com que a “Gloriosa Revolução de 64”
tratava seus desafetos. Se, à época, não fosse imberbe, arriscar-se-ia a ter a
barba cortada a facão, pois estas eram as regras do jogo – e os ditadores nos
queriam todos devidamente depilados, pois barba grande e cabelo idem eram
sinais inequívocos da intenção de derrubar o governo. Esse sertanejo de Baixa
Grande, para o bem de todos nós, passou ao largo da tortura, sem abdicar de
suas convicções: se perdeu anéis, ao menos manteve intatos os dedos, as unhas e
o buço emergente, de grande futuro.
Jorge Araújo é
intelectual completo: escreve poesia, conto, crônica, ensaio, pesquisa, teatro
e ainda encontra tempo para orientar teses de mestrandos, visitar o bar e jogar
conversa fora com os amigos. Sabe administrar o tempo e dissimular intenções:
quem o vê diante de uma cerveja, em papo comprido de fim de tarde,
desapressado, bom ouvinte e bom falante, pensa que descobriu mais um desses
boêmios sem relógio, responsabilidade ou patrão. Ledo Ivo engano. Jorge tem um
entendimento quase bíblico da adequação da hora. Conhece o tempo de plantar,
colher, flanar, beber, namorar e casar (atividade a que ele se tem dedicado com
impressionante persistência) e trabalhar, que ninguém é de ferro. Quando se
enfurna na biblioteca, a ler, pesquisar, anotar e produzir, esquece o mundo do
lado de fora, seja em sua casa, seja em outros sítios, pouco importa onde
esteja a informação buscada. Coleções públicas ou particulares, no Rio, São
Paulo, Oropa, França e Bahia recebem frequentes visitas suas. Sequer os
alfarrábios escondidos sob poeira secular na Torre do Tombo, em Lisboa, lhe escaparam
à perseguição, quando esteve à cata de um certo padre Antônio Vieira. Por
certo, contabiliza algumas crises de alergia – mas do que valem espirros e
corizas, se os resultados são tão prazerosos?
Feitas as
contas, de Eu nu e algumas curtas
estórias (1969) até Floração de
imaginários (2008) ele publicou quase um livro por ano. A leitura em si é
tema recorrente (“Ler é evitar que a alma infarte”, diz em Agenda de emoções extraviadas), mas o espectro de interesse do
autor é muito amplo, indo do citado Vieira à análise literária propriamente
dita (Jorge Amado, Jorge de Lima), do mito de D. Juan às pegadas de Anchieta na
praia, com passagem pelo teatro (Auto do
descobrimento: o romanceiro de vagas descobertas), sem gastar o espaço
cativo da crônica literária (Ainda que
nos precipitem, que, juro-lhes ser verdade, tem prefácio meu) e da poesia (Os becos do homem, com prefácio de
Antônio Houais). O liame político jamais foi rompido, pois o autor não quer e
(me arrisco a dizer) não pode fazer tal ruptura. Está lá, em “Escrevo para me
manter vivo”, no livro Caderno de
exercícios – algumas reflexões sobre o ato de ler):
“A escrita é
minha prática subversiva, sempre a minha forma de ver o outro lado do mundo, de
ver não oficialmente como me convidam a ver”.
A
última grande proeza de Jorge, abstraindo-se uma premiadíssima biografia de
Graciliano Ramos, é o ensaio Floração de
imaginários (Via Litterarum/Itabuna). Os que não conhecem esse livro vão
pensar que minto, mas me arrisco a dizer: são 77 romancistas com suas obras
analisadas num espaço de 490 páginas – o que significa dizer uns 380 livros
lidos, pesquisados, virados pelo avesso, e todos tratados com generosidade e
respeito. Se você ouviu falar de um obscuro baiano que escreveu um romance há
anos tantos (desde que no século XX), ele estará em Floração... Jamais se teve notícia de alguém que reunisse tamanho
conhecimento da literatura baiana. O livro ganhou o prêmio Braskem de ensaios,
mas isso não chega a nos dar a sua verdadeira dimensão. Merece muito mais, pois
é o manual, o inventário, o vade-mécum, o alfa e o ômega, o quem-é-quem do
romance neste Estado.
No mais, é dizer
que Jorge Araújo é indivíduo pleno em generosidade, distante de arrogâncias,
limpo de soberbas, que jamais se utilizou de sua forte erudição para humilhar
pessoas ou elevar-se pessoalmente. Diante delas, ele desce ou se eleva, de
acordo com o nível de cada uma, nunca querendo ser “superior” a ninguém. Nem
precisa. Creio que se fôssemos uma terra dada a cultivar valores intelectuais
(não sei se existe alguma assim), Jorge Araújo não poderia sair à rua sem
segurança reforçada: teria popularidade parecida com cantores de rock, pagode
e arrocha. No dia em que Itabuna e Ilhéus criarem juízo vão tombá-lo como
patrimônio cultural da região. Eu estarei lá, batendo palmas.
(A ideia destas
reminiscências me veio ao atender, prazerosamente, a pedido de informações do
cineasta Hermano Penna, diretor do festejadíssimo Sargento Getúlio, sobre o
romance de Marcos Santarrita. Mandei ao cineasta o acima referido Floração de imaginários).
Antônio Lopes é jornalista, cronista, ensaísta e contista.