Bom homem, má
vida
Antônio Lopes*
Tenho um
amigo (pobre como Jó e eu) que diz ser fácil enriquecer. “Basta abrir mão de
alguns princípios”, ensina ele a lição que nunca aprendeu. Lembro disso ao ver
um morador de rua próxima à minha, que quase todas as noites passa com um fardo
de papelão na cabeça, a caminho de casa. Aquela carga insólita, eu soube depois,
é o fruto do seu trabalho diário: cata nas lojas, supermercados e onde mais
haja caixas desocupadas que, reunidas em bizarro pacote, leva a alguém que as
compra na balança, pagando-lhe não a peso de outro, é evidente, mas míseros
doze a quinze reais por quilo. É um homem magro, idade indefinida, cabelos já
meio grisalhos que o denunciam como não muito jovem – mas talvez a má vida o te
há envelhecido antes da hora.
Teria uma
mulher à porta do barraco nesses fins de jornada, a inquiri-lo sobre a produção
do dia? Será que ela sabe quão raro é esse homem simples que cata papelão?
Tomara que sim, e que ela possa premiá-lo com seu carinho exclusivo, em
recompensa pelo trabalho nem sempre rendoso. Talvez, após o jantar frugal, ele
veja a novela das nove, fugindo à sua realidade de homem pobre. Ou não. Saberia
quanto ganha um deputado, um senador, um ministro do Supremo, e pensaria, com a
ideologia calhorda que lhe foi inculcada, que é “natural” a divisão entre
pobres e ricos? Nada sei desse homem, a não ser que ele é um trabalhador
discreto e honesto.
E sei que
se trata de um bom homem, homem de princípios, sejam oriundos de pais severos,
de religiosidade ou de aprendizado doído na escola da vida. Não fosse assim,
ele faria como fazem contemporâneos seus bem mais “espertos”: traficam drogas,
assaltam, roubam, furtam e matam, num jogo em que a aposta é não ser
descoberto. Essa busca do poder e do dinheiro por qualquer meio consolida o
pensamento do meu amigo: esses valores estão no mundo e o acesso a eles não é
difícil, basta renunciar a algumas amarras morais. E nas diversas rodas do
poder e dos indivíduos bem sucedidos não é raro encontrar quem a elas haja
renunciado.
Imagino
que esse meu irmão, quem sabe dono de um barraco, poderia ser algum tipo de
bandido, escancarado ou implícito – e morar num palácio. Mas ele escolheu outro
caminho, não se sabe o motivo.
Na volta ao lar, no fim do expediente, passa por
mim e, com a serenidade dos justos, me dá boa-noite. Isto não nos faz amigos,
talvez nem conhecidos, pois parte do seu rosto é sombreado pela carga que
carrega. Mas, embora não saiba, ele leva para casa meu respeito e minha
solidariedade. Bem gostaria de lhe dizer quanto o admiro, mas me falta ousadia.
Na penumbra, às suas costas, mesmo sem crer, lhe dedico uma frase em voz baixa:
“Que Deus o proteja”.
Antônio Lopes é jornalista, cronista, ensaísta e contista.