“Je pense, donc je suis Charlie!”

                                                 
Sônia Carvalho de Almeida Maron*


         A manifestação realizada pelos franceses com a presença de cinquenta chefes de Estado à frente da passeata que saiu da praça da República, em Paris, foi extraordinária. Em verdade, extraordinária e única,  é a Cidade Luz reconhecida acertadamente como a capital do mundo. Entre os milhares de faixas e cartazes que os franceses agitavam, uma foi destaque especial : “Je pense, donc je suis Charlie”, ou melhor, “Eu penso, portanto eu sou Charlie”. Observa-se que o cidadão francês, mesmo nos momentos de dor, não esquece a erudição, o verniz cultural, e busca inspiração na conhecida frase de René Descartes: “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo).
         É claro que a França pensa e a França existe. Não foi por acaso que os princípios democráticos proclamados no Iluminismo nasceram no país que festejou a queda da Bastilha em 4 de julho de 1789 e a entrada triunfal das tropas aliadas, em 25 de agosto de 1945, libertando Paris da ocupação nazista. Agora, no século XXI, os franceses reúnem  os estadistas do mundo no desfile que consagrou a união de etnias, culturas e religiões para proclamar o repúdio ao terrorismo, acompanhados pela multidão estimada em três milhões de pessoas, movidas pelo sentimento de verdadeiros “enfants de la patrie”. Sob o comando das vozes que entoavam a  Marseillaise, de forma ordeira e civilizada, desfilaram François Hollande ao lado de Angela Merkel, Benjamin Netanyahu e Mahmoud Abbas, seguindo-se  os demais chefes  de Estado da Europa, África e Oriente Médio que caminhavam lentamente, de braços dados. A disciplina, a ordem, o respeito mútuo e a fraternidade prevaleceram no monumental desfile, provando que a violência ditada pelo terrorismo terá uma resposta do mundo civilizado.
         Terrorismo e totalitarismo são gêmeos siameses, ligados ao desejo doentio de dominação presente nas páginas mais vergonhosas que a humanidade já escreveu. A distorção de uma filosofia religiosa tem por objetivo único o poder, ainda que seja banhado de sangue e são muitos os exemplos desde o passado mais remoto. A França do século XVIII já proclamava a liberdade de expressão no art. 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrando “a livre comunicação das ideias e opiniões como um dos mais preciosos direitos do homem” e o século XXI não pode ser o palco do retrocesso e da covardia.
         A linha satírica do jornal francês, apesar da irreverência apontada por alguns, encerra através do humor, a alegria que a liberdade simboliza. Sendo um veículo de comunicação laico, nunca deixou escapar ninguém que estivesse sob os refletores da fama e o Papa Bento XVI já serviu de inspiração para as críticas do Charlie Hebdo, por ocasião das denúncias dos casos de pedofilia na igreja católica; não consta que o Vaticano tenha revidado o “ataque” irreverente ou que os cartunistas tenham sofrido a pena da excomunhão. Em verdade, o fanatismo religioso sempre serviu de cortina de fumaça para ocultar os planos políticos de dominação e perpetuação de um grupo espúrio que planeja perpetuar-se no poder a qualquer custo: basta lembrar o suposto ideal religioso que inspirou a própria igreja católica no século XIII, representado pela Inquisição e seus Tribunais do Santo Ofício.
         Enquanto os mais sensíveis lamentam o clima de terror instalado na França, nós, “deitados eternamente em berço esplêndido”, esperamos placidamente acontecer o momento em que a pátria brasileira decida “erguer da justiça a clava forte”. Afinal, somos “brasileiros com muito orgulho e muito amor”. Já viramos muitas páginas tristes e vergonhosas e temos nosso terrorismo tupiniquim, pacífico e inofensivo, sob o comando de Babaus, Sininhos, Black blocs, MSTs e congêneres, tudo na mais santa paz.
Ficamos no prende e solta ditado pela leniência e estímulo à impunidade, sob a rigorosa observância dos direitos humanos como todo país civilizado que se preze. Até mesmo o novelão da Petrobras, atualmente em cartaz, segue em frente sendo ignorado por nossos cartunistas; talvez não desperte o interesse de Ziraldo, Caruso e seus colegas porque o elenco é composto de personagens principais tão feios, feios de assustar, naturalmente hilários pela aparência, a ponto de provocarem comentários bem humorados quando mostram o rosto. Sorrir ainda é e sempre será o melhor remédio.
         E já que falamos em nosso último novelão, vale encerrar com a frase da primeira página da edição especial do Charlie Hebdo, circulando hoje no mundo: Tout est pardoneé ( Tudo está perdoado). E acrescentaria: em nosso caso, perdoados pela feiúra, não pelos crimes.

  *Ex-aluna do Ginásio  Divina Providência
Profª Msc aposentada da UESC
 Juiza aposentada do TJBA
Presidente da Academia de Letras de Itabuna - ALITA