ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA ‒ ALITA
LANÇAMENTO
DE LIVRO
O
CANTO CONTIDO
de
Valdelice Soares Pinheiro
Coletânea
organizada por Cyro de Mattos
Itabuna,
26 de março de 2015
Senhora Sônia Maron, DD Presidente da
ALITA
Senhoras e Senhores Acadêmicos,
Senhoras, Senhores e Jovens,
Amigas e Amigos, aqui presentes ou
representados.
Sejamos todos bem-vindos com a graça de
Deus.
Permitam que lhes conte um itan, isto
é, uma história nagô. Trata-se de
A CILADA CONTRA IKU
Contam os mais
velhos que havia uma cidade que estava sendo castigada por epidemia. Era uma
festa para Iku, que andava atarefado em levar tanta gente para fora deste
mundo. Mas havia um homem que resolveu fazer diferente. Ele foi em busca de um
conselho de Orumilá. Então, ele procurou um babalaô para fazer uma consulta,
saber o que o Pai Maior tinha para lhe dizer. Não deu outra: o babalaô jogou o
opelé e Orumilá respondeu direitinho ao que o homem queria saber.
Foi recomendado
que o homem fizesse um ebó com certos objetos de segredo e seguisse todo o
preceito. Também conseguisse um quati vivo e amarrasse o bicho acima da porta
de sua casa. O homem voltou de lá muito confiante e foi providenciar os objetos
necessários. Encomendou um quati vivo a um caçador e amarrou o bicho pendurado
acima da porta, para que todo mundo visse aquilo.
Vai daí que Iku
entendeu de fazer uma visitinha à família do homem. Foi chegando, todo enrolado
em seu manto preto, porrete na mão, seguro de si, confiante no seu poder. De
repente, ele suspendeu a cabeça e viu o bicho pendurado acima da porta. Disse
para si mesmo:
– Coisa boa! Vou
ter até uma sobremesa...
Foi se
aproximando, se aproximando... E o quati bem quieto, pendurado. E quando Iku
estirou o braço para pegar o quati, o bicho deu um bote na cara de Iku. Todo
mundo sabe que as garras de um quati cortam igual a navalha. Quando um caçador
vai para o mato e que seus cachorros avistam um bicho desse, a primeira coisa
que ele faz é chamar os cachorros de volta. Do contrário, o quati deixa os
cachorros em pedaços. Pois bem: as garras do quati lanharam a cara de Iku. Com
o porrete que levava, Iku tentou acertar o quati, mas errou o golpe e acertou
na corda. O bicho se soltou e pulou na cabeça de Iku, que saiu em desabalada
carreira pelo mundo a fora, prometendo tão cedo não voltar ali.
Pois é: para espantar a morte basta
reinventar a vida.
Iku é a palavra nagô designativa para a Morte e pertence ao gênero masculino.
Pois é: para os nagôs, a Morte não é feminina. É ele. E o que nos ensina o itan
narrado agora? Simples assim: para
espantar a morte basta reinventar a vida. E todos sabem: a simplicidade é o
último degrau da sabedoria. Vale, então, por isso mesmo, revisitar Mateus 10:
16: “Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas.”
Sonho maior de todos os viventes é, pelo menos, adiar a morte. Ou como querem os
nagôs, espantá-la.
Justamente isso estamos fazendo aqui e agora: espantando a morte, isto é,
reinventando a vida. Justamente agora estamos amarrando nosso quati e
pendurando o bicho acima da nossa porta. Isso, porém, ainda não é o bastante. É
necessário que todo mundo veja isso.
Mas em que, amigas e amigos, o itan sobre o quati se encaixa neste evento
acadêmico, do lançamento de um livro, que é uma coletânea de poemas de
Valdelice Pinheiro, que nos deixou desde1993? É porque ela acreditou sempre
que, para espantar a morte
basta reinventar a vida. Ela construiu-se, e propiciou aos que viveram ao
seu redor, num viver de prudência igual às cobras e de simplicidade igual aos
pombos. Eis aqui, então, a concretude de tal viver: O canto contido. Trata-se de um
livro que é uma coletânea coordenada pelo escritor e poeta Cyro de Mattos. Os
poemas foram recolhidos dos dois livros que Valdelice publicou em vida: De dentro de mim (1961), Pacto (1977), além de poemas dispersos.
Nessas fontes, o coordenador bebeu e traz para nós esse canto contido.
Milagrentos, milagreiros e milagrosos, Cyro de Mattos, Sônia Maron, a ALITA, o
Laboratório LIDI, a Giostrieditora, a FTC, a família Pinheiro, no seu campo de
atuação cada qual fez com que todo mundo veja isso, conforme nos ensina o itan.
Este não é o momento para as análises literárias acadêmicas. É momento de
degustação, de vida, porque Iku foi espantado, banido para longe, bem longe.
Fiquemos, pois, com o legado poético de Valdelice. Melhor do que descrever como
se faz um bom prato é degustá-lo. Poemas arrebatadores, versos que nos fazem
caminhar pelos meandros de nós mesmos em busca do encontro consigo mesmo, com o
outro, com a vida, com Deus que, afinal, é tudo isso. Por isso vale a pena
rever duas de suas magistrais produções:
RETRATO
O
canto contido
no
centro do corpo,
o
pranto pasmado,
perdido
de dor,
o
gesto partido
nos
dedos sem fé,
o
peito matado
nas
ânsias do amor.
E os
pés sem caminho
marcando,
sem
passo,
um
destino sem traço,
sem voz
e sem
cor.
PACTO
Poeta,
vamos fazer um pacto?
Vamos
praticar o gesto que traduz o poema,
que
tira o poema da palavra
e o
coloca no ato, e o faz pedra,
ou faz
da palavra o gesto e o ato?
Vamos
entrar no grande salão vermelho do rei
e
entregar nossas vestes douradas, nossas plumas,
nossas
rodas, nossos pecados?
Vamos
enlouquecer, nus, pelos caminhos,
os pés
descalços, as mãos vazias,
repetir
a festa do primeiro dia
e
reinaugurar a razão?
Vamos
chegar na praça e dividir o pão,
dividir
o amor, dividir a mão, dividir o sorriso,
o
gesto, a palavra, a cor?
Vamos
reencontrar o Homem perdido?
Vamos
recuperar o ritmo e o Paraíso?
Vamos
ser no gesto e na palavra pensamento
e ato
sem tempo, sem espaço, eternos?
Vamos
quebrar esse campo de força
que
separa poema e ato, verso e matéria?
Se os donos do mundo, prefeitos, governadores, presidentes,
primeiros-ministros, reis e assemelhados assumissem tal desafio e firmassem o
pacto proposto por Valdelice, certamente o Reino do Céu se estabeleceria sobre
a terra. Mas podemos, é bem verdade, cada um de nós, a seu modo, num movimento
de vaivém, ora na condição de indivíduo, ora juntando-se coletivamente,
construir pequenos pedaços de paraíso. Se agirmos assim, o divino fará o resto.
Muito obrigado.
Ruy
Póvoas