Cyro de Mattos
Ela nunca soubera
o tempo de escutar a própria voz e se sentir em disponibilidade de si mesma.
Pouco a pouco, uma realidade foi sendo constatada em seus ângulos
desconhecidos. Respirava entre pessoas que se encontravam para manter um ritmo
sem qualquer atrativo humano especial,
apenas para alimentar certo rótulo social e econômico, exibido com enorme
satisfação como um trunfo que poucos na vida conseguem. Perfis da vitória nos seus acentos circunflexos, gestos
redondos que se intumesciam de prazer, na mesa a prata castiça, iguarias e
bebidas raras. Os dias desfilavam sob o peso de uma mentira constante. Por
acaso existirá no mundo algo mais triste do que a solidão em família com as
palavras encobrindo verdades e ferindo como faca? Ela tinha tudo em suas mãos,
mas o sonho de viver livre era um passo que parecia impossível de ser dado. Um
pássaro que não voava, com o seu canto
prisioneiro guardado numa gaiola de ouro era mesmo uma coisa sem sentido. E o
dissabor da realidade desse pássaro artificial atingiu o ponto máximo quando
ela percebeu que os filhos não precisavam mais dela, e o marido, o
banqueiro mais famoso da cidade, fechado
no mundo dos negócios, era uma pedra que se lançara para o fundo de um poço.
Um grito então
aconteceu. Como algo especial que se aqueceu em segredo e apareceu na paisagem
para se propagar com os dias plenos de ardor. Laura Palmer, senhora de alta
sociedade, mãe de três filhos, todos casados, em romance com Clarindo Mali,
compositor negro, cantor do bloco Olodum, que neste ano vai apresentar durante
o carnaval o tema “Dogons, o povo das estrelas”, e mostrará como se deu a
criação, a origem da vida, do nosso planeta e do universo. O bloco irá mostrar no desfile dessa temporada a importância do respeito às águas, o amor às
estrelas, de onde viemos e para onde vamos voltar um dia. Milionária divorciada
grava o seu primeiro CD e entra com surpreendente sucesso no mundo apaixonante da música popular. E fofocas e
comentários e disse me disse. Ela assim conheceu que aquele grito
deveria ter sido dado muito antes. Aos dezessete anos talvez. Na plena força da
idade quando o coração pulsa com o fulgor
maravilhoso de um sol, a irradiar luz por todos os recantos. É bom
caminhar assim e sorrir e chorar. Esta a vida do ar, do amar e do sonhar,
pensou.
Na medida em que se via penetrada das cores da
realidade nova, ela se sentia levada por ondas que iam deixando para trás cenas
de uma alma saturada de coisas insignificantes. Havia circulado naquele tempo
habitado por rostos sem brilho, beijos sem afeto, dedos sem entrelaço. Que
droga, aquela havia sido a sua estrada? Quanta insinceridade, meu Deus, as
pessoas haviam colocado nisso tudo, nessa estrada horrível, a essa altura
comprida. Pessoas de seu círculo formaram logo opiniões. Quiseram tomar
detalhes, reincidiram nas visitas, mostraram-se inconformadas com aquela
mudança súbita. No fundo mesmo ficaram
revoltadas com a altivez acentuada que surgiu dos traços harmoniosos de
seu rosto. Alguns parentes, não conseguindo ferir os encobertos objetivos,
utilizaram-se das armas do desprezo, coação e
censura.
A propósito, há
poucos dias sua mãe fez a seguinte observação: Depois de velha, você entendeu
de ser artista... E ela, agora eu sou livre, l-i-v-r-e. E seu ex-marido, o
banqueiro Carlos, deixou um pouco de lado o mundo dos sucessos econômicos e
resolveu também interferir. É essa a maneira de você retribuir aos filhos o amor
que eles sempre dedicaram a você? E ela: Na minha maneira de ser nada mudou para eles,
apenas agora eu estou vivendo. E os filhos por sua vez disseram que não
acreditavam no que estava sendo publicado nas colunas sociais dos jornais e revistas.
Esses comentários chocam muito. E ela, não vendo qualquer motivo que
justificasse esconder a verdade,
procurou deixá-los a par de tudo.
Vocês não devem sofrer por isso, gostaria de dizer a vocês o inverso do
que eu ouvi dos meus pais, o oposto de tudo o que eu aprendi com eles.
Concluindo: Sinto-me na vida. E mil coisas agradáveis, marcantes, ela passou a
conhecer.
Aconteceu ela cruzar
inúmeros caminhos, descobrir-se com uma infinidade de pessoas, cuja beleza
consistia em fazer da vida uma realidade simples, espontânea, habitada nos seus
movimentos cotidianos à vontade por ondas de calor e brilho forte.. E
recentemente lhe tocou uma emoção grande quando aquele rosto tão jovem
aproximou-se dela e perguntou qual seria o título do seu livro de memórias e
ela, irradiando serenidade e alegria, sem hesitar um minuto sequer, respondeu: Viver.