Carta do escritor Cyro de Mattos para a poetisa Eglê Machado
Cara Eglè
Não conhecia essa entrevista. A Gerana Damulakis, crítica conceituada na Bahia, tem escrito sempre sobre meus livros. Nunca me falou dessa entrevista. Por sinal, ela incluiu um conto meu, Inocentes e Selvagens, que me deu meu primeiro premio literário de expressão, o Internacional Miguel de Cervantes, para escritores brasileiros e portugueses, em 1966, na Antologia Panorâmica do Conto Baiano, que ela organizou. E também prefaciou a segunda edição de meu livro Os Brabos, novelas, Prêmio Nacional Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras.
Não se pode
deixar de considerar que poucas são as pessoas hoje que gostam de
ler a boa literatura. Pessoas que se dizem escritores nessa terra, por exemplo,
deixando o pudor de lado, pouco me leem. E os que estão começando nem
sequer me enviam seus livros, com raríssima exceção. Os escritores dessas
bandas ou os que andam nessa praia das letras como tal procuram mais
encobrir ou agredir, sempre desfazer, excluir para a afirmação pessoal.
Usam a estratégia da omissão, de ocultar, torcer o nariz, para relegar ao
exílio ou ao esquecimento o autor aclamado pela crítica nacional, com várias
reedições. Não conhecem , também, a valorosa escritora
itabunense Sonia Coutinho, contista e romancista das melhores no século
XX, no mesmo nível do Hélio. Muitos não conhecem nem mesmo o
trabalho intenso e extenso do Hélio Pólvora. Muitos acionam o alarme
quando o héroi está morto, assim é mais fácil pongar nas glórias do que
partiu.
Como é que
um escritor da grandeza de Hélio Pólvora não ocupou uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras? Na sessão da saudade, na Academia de Letras da
Bahia, para homenagear a memória de João Ubaldo, no ano passado, eu fiz
essa pergunta, finalizando minha fala. Sugeri que o nome do Hélio Pólvora
fosse indicado para substiuir o de João Ubaldo na Academia Brasileira de
Letras, antes que fosse tarde. Hélio partiu e não teve,sem fazer favor, o
reconheimento e ser um dos membros da Academia Brasileira de
Letras.
Você é uma
exceção, cara Eglê. Gosta de literatura, de bons autores, prestigia o que
tem qualidade, divulgando no seu prestigioso blog. Ao contrário, existem
aqui e lá fora até os que tentam se apropiar da criação literária alheia,
na sanha de competir para sufocar e aparecer...
Sou
admirador da obra de Hélio Pólvora, há muito tempo. Organizamos juntos a
antologia Contos Brasileiros de Bichos, publicada em 1968, a única no Brasil
até hoje sobre o assunto, pelo menos com o número extenso de excelentes
contistas que escreveram sobre o assunto. Os três mil exmplares da tiragem pela
editora Bloch esgotaram-se rapidamente. Hélio prefaciou meu primeiro
livro. Foi generoso. O livro meu de estreia tem mais baixos do que altos.
Retirei-o há anos de minha bibliografia. Ele enxergou em excesso as
avançadas qualidades da obra do estreante. Ele soube que eu nunca perdoei esse
gesto dele. Esse tipo de gesto amigo às vezes prejudica porque ilude, não
ajuda.
Quanto à
entrevista da Gerana Damulakis com o Hélio, que você teve a delicadeza
costumeira de enviar, é maravilhosa, cheia de substância, erudição, observações
lúcidas sobre a vida e a literatura. Diria sem medo de exagerar que a
literatura foi a crença do Hélio Pólvora. Assim a entrevista não me surpreende
quando se trata de Hélio Pólvora. Apenas estranhei ele não citar Adonias Filho
como um dos grandes de suas afinidades eletivas. Ele que já escreveu textos
primorosos sobre esse escritor grandão de nossa região. Isso acontece. A
pesquisadora Nelly Novaes Coelho, professora emérita da USP, escreveu um livro
de mais de 900 páginas sobre os melhores autores do século passado, fruto de
estudos em mais de vinte anos. Seu monumental Escritores Brasileiros do Século
XX, Editora Letra Selvagem, SP, 2014, não traz uma linha sobre a boa
literatura de Hélio Pólvora, sendo ela uma erudita, conhecedora profunda de
nossa literatura, em todos os tempos. Estranhei. Dedicou mais de dez páginas
sobre minha obra de contista e novelista no seu livro quando deveria se
debruçar sobre a obra do escritor Hélio Pólvora, com mais volumes e
qualidades. Prova de que não somos completos e que a vida é falha. Escrevemos
na tentativa de torná-la completa, inaugurar novos sentidos. E não conseguimos
nesse mistério que é a vida, ficamos perdidos no labirinto de Orfeu entre
o primeiro vagido e o último suspiro.
Quando
escrevo, morro; se não escrevo, morro também. (Gabriel Garcia Márquez)
Se quiser
pode publicar essa conversa que acabo de ter com você. Abraços, Cyro de Mattos