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Cyro de Mattos
Nunca conheceu os
pais. Era lenhador o pai Salatiel, respeitado pelo povo da Vila do Pati como o
melhor para derrubar árvore grande com o machado nas matas do Japará. Certa vez tinha ido derrubar um jequitibá
seco. No segundo golpe que desferiu com o machado no jequitibá seco, um galho
grosso despencou lá do alto e veio bater
na cabeça dele. Ali mesmo tombou
estrebuchando, a cabeça com os miolos de
fora, os olhos graúdos não enxergando mais o mundo.
Quando o pai morreu,
ela estava na barriga da mãe, fazia pouco mais de sete meses. A mãe Firmina
ficou tão atordoada quando soube da
morte do lenhador Salatiel que desmaiou ali mesmo na porta do casebre. Teve as
dores do parto semana depois do enterro
de seu homem, a criança nasceu fora do
peso de uma gestação normal.
Não precisava fazer
aquele pedido, Vô Isidro era quem
abrigava em seu casebre as crianças que ficavam sem pai e mãe na Vila do
Pati. Alguns dos meninos criados pelo velho curandeiro foram
tentar ganhar a vida na cidade distante quando cresceram e a sombra do bigode
começava a aparecer no lábio superior. Dois deles levavam a vida em Belmontina como carregador de bagagem dos passageiros que
desembarcavam do trem na estação ferroviária. O filho do arrieiro Lalau teve
mais sorte. Aprendeu o ofício de sapateiro e abriu sua tenda num beco
próximo da feira. Mas a
maioria daqueles meninos criados pelo vô Iisidro sabe Deus como ficava ali mesmo trabalhando nos pertences de
Vulcano Brás quando já estavam com as feições de homem.
Devia ter uns dez
anos de idade Maria Pendanga quando Abelardo Pança-Farta entregou a filha
dele para que vô Isidro cuidasse dela.
Ela se afeiçoou tanto à filha de Abelardo Pança-Farta que parecia
uma irmã mais velha, cuidando da mais nova com todo o zelo. Pegou um
periquito na visgueira que armou no pé
de jaca e disse que era pra Nininha brincar com ele pelo casebre quando
estivesse manso, como se o bichinho fosse um brinquedo vivo.
Maria Pendanga
cresceu com jeito de homem, chamando a atenção dos que moravam na vila do Pati. O buço sombreava o lábio superior,
os braços fortes, os quadris firmes. Tinha uma inflexão impositiva na voz um pouco grossa para uma moça de sua
idade. Encarava os homens da vila sempre de rosto fechado. Aparava os cabelos, deixando-os no corte rente. De mulher o
corpo mostrava-se nos seios e no sexo como Deus tinha dado a cada fêmea no
mundo.
NOTA. . O texto Maria
Pendanga é um capítulo do romance Os ventos
gemedores, de Cyro de Mattos, publicado pela Editora Letra Selvagem, de São
Paulo. A pesquisadora e analista Nelly
Novaes Coelho, doutora em letras, da USP, observa sobre a obra do autor
do romance: “Obra que se revela em continuado
processo de recriação estilística e de escavação existencial, a de Cyro de
Mattos, enraizada em sua terra e sua gente, expressa a constante
busca de uma sintonia cada vez maior com a acelerada mutação do nosso tempo.” (In: Escritores brasileiros do século xx ,
Editora Letra Selvagem, São Paulo, 2013).