Por Florisvaldo Mattos
Na introdução à segunda edição de Canção da Partida (Salvador: Fundação
das Artes, 1990), José Paulo Paes lamentou estivesse a poesia de Jacinta Passos
(1914-1973), àquela altura, “ausente das livrarias”, desde a publicação de sua
última coletânea de versos, Poemas
Políticos, 39 anos antes, precisamente em 1951. Atribuía tal ausência a
“razões de vária ordem”, como “o reconhecido descaso do leitor brasileiro”
então pelos livros de poesia, o que os condenava, “com raríssimas exceções, a
uma vida editorialmente curta”, e a problemas de saúde que afetaram a vida da
poeta.
Ponho-me a cavaleiro desse vexame
editorial, já que coube justamente a mim, por razões que atribuo à ingerência
dos fados, então na presidência da Fundação das Artes (1987-1990, atual
Fundação Cultural do Estado da Bahia - Faceb), no governo Waldir Pires, o
privilégio de apoiar e favorecer as iniciativas que resultaram na segunda
edição de Canção da Partida, de cuja
organização e estudo crítico se incumbira José Paulo Paes.
Atendendo a um gentil convite de
Janaína Amado, sua única filha, volto agora a me encontrar com a poesia de
Jacinta Passos. E não poderia imaginar quanto me iria oferecer de aprendizagem
e deleite espiritual essa auspiciosa homenagem. Primeiro, retirando-me do
desconforto de leitor de um único livro da poeta, o já citado Canção da Partida, em sua edição baiana;
depois, por me permitir a leitura de outros, desde o inaugural, Momentos de Poesia, 1942, a própria Canção da Partida, na edição de 1945,
com ilustrações a bico-de-pena de Lasar Segall, Poemas Políticos, de 1951, e a sua poesia de nítido vinco
ideológico de A Coluna, de 1957.
Confesso que saí dessas leituras sumamente
reconfortado, como que liberto de uma culpa, e enriquecido pelo que me trouxe a
ampla gama de significados presentes no corajoso lirismo de Jacinta Passos. E
foi percorrendo as latitudes deste estuário que atentei para as singularidades
de um norte temático, responsável por rupturas na criação poética, para as
quais o ano de 1939 se oferece como ponto de partida, justo com o poema
intitulado “Campo limpo”, quando paulatinamente começa a desaparecer de sua
poética o que José Paulo Paes chamou, em seu estudo, de “flexão verbal da
súplica”, elemento condutor de símbolos por meio dos quais anteriormente se o
espírito religioso e o temperamento místico de Jacinta Passos.
Jacinta Passos com sua filha Janaína, fruto de sua relação conjugal com o escritor James Amado |
“Campo limpo” parece estabelecer um
divisor. A índole poética como que, gradativamente, se desvia, se exila das
invocações místicas, em busca de outras cogitações, outros cenários, onde o
nome de “Senhor”, conquanto presença ainda não indispensável, vai se
ausentando, substituído por outras formas de satisfação espiritual e
existencial.
Poemas
são janelas, e poetas, faces, prontas para descobertas, há de ter pensado
Jacinta, em fins de 1939, provavelmente quando redigiu este poema, que a fez
vislumbrar, primeiramente, o ardor da “natureza viva”, brotando do ardor da
seiva de campos, a ondular ante novo olhar de assombro para as formas da
existência real. Vê profundidades de noites e estrelas, num esplendor de
beleza, que a faz perceber em si “uma estranha alegria” – a terra, os campos, a
paisagem, como pedaços vivos de si própria, vibrações de uma vida que amanhecia.
Realmente,
amanhece ali outra Jacinta Passos, e logo se produz um encadeamento vibrante de
temas na sua poética. No primeiro poema de 1940, “Alegria”, mente alerta a perscrutar,
a poeta descobre o “irmão desconhecido e anônimo”, cuja “face marcada pelo
sofrimento” tem o “traço de semelhança” com a verdadeira “face perfeita de
todos os homens”.
Tudo
doravante torna-se matéria de descoberta. Neste mesmo ano, já com a guerra de
Hitler avançando – “A guerra”, “Poema” -, veredas de amor e ternura se abrem pela
via mais larga da solidariedade humana; o olho e o olhar se aproximam de seres
humanos carentes de cuidado e afeto.
Simplesmente,
Tranqüilamente,
Eu
me abandonarei a ti num gesto de oferenda.
Encontrarás no meu olhar a compreensão das
palavras que não disseres.” (“Poema”, Momentos
de Poesia)
A virada se acentua em 1941 com a
assunção plena da consciência solidária, a introspecção reflexiva mostrando o
sentido da vida em favor de outrem, em poemas como “Compreensão” (Esquecida/ de todas as dores do mundo, do
mal profundo da vida), “Mensagem aos homens” (Inteira, pura e livre como a luz, a livre luz das alvoradas),
“Mistério carnal” (Corpos humanos que a
morte tocou. / Por que esperam os corpos abandonados/ na branca solidão do
vasto cemitério?).
No processo de libertação da
transcendência para a progressiva assunção de uma consciência social, antes
mesmo de firmar-se uma opção de cunho ideológico sob os ditames de uma
agremiação política (sabe-se que ela em 1945 filiou-se ao Partido Comunista
Brasileiro), Jacinta Passos começa a delinear um panorama temático com a
sensibilidade voltada para uma gama de preocupações e anseios que futuramente
se vão desdobrar e se firmar, a par com as marchas e contramarchas de um
processo político, através de movimentos, campanhas, organizações, bandeiras,
cuja força de atuação irá se afirmar e crescer, abarcando sucessivos decênios,
à medida que o século XX avança, para se transformar em uma quase neurose, ao
irromper o XXI.
Esse amálgama ideológico que busca se
definir numa contracorrente das mudanças políticas cristaliza-se em torno de um
feixe temático que, agindo como doutrina de múltiplas faces, vai concentrar-se
em fenômenos sob a forma de lutas em defesa da cidadania, do meio-ambiente e da
internacionalização de propostas globais de total afirmação das potencialidades
do humanismo.
Escola Normal da Bahia, que ela frequentou de 1927 a 1933, depois sede da Faculdade de Filosofia da UFBA |
Tenho para mim que esse painel temático
se escalona, arbitrariamente, na seguinte ordem:
1 - a mulher, a condição feminina,
inserida num processo de afirmação e ascensão;
2 - a criança, que desperta a confiança
no futuro, a merecer atenção, sendo até objeto de projetos e programas, em
escala mundial, que impeçam venha ela mergulhar no desamparo;
3 - a natureza, expressada como um bem
a serviço da felicidade geral dos homens, refletindo-se em todos os passos da
existência humana, o que pressupõe uma luta permanente pela sua preservação;
4 – finalmente, eleição exaltada das
manifestações populares como refúgio dos desassistidos e vencidos pelos
desajustes da própria ordem opressora, na qual se inserem todas as vitimas das
desigualdades sociais.
Configurando o que já era uma tendência
no livro anterior, Canção da Partida
se apresenta como uma síntese do engenho antecipador desse humanismo militante,
que, por vezes, na dimensão das ações práticas, toma a forma de humanitarismo.
Ao longo deste livro, a poeta constrói poemas, que vão acumulando, concentrando
as potencialidades de uma energia humanista, que não seria demasiado chamá-la
de raiz precursora de atitudes, comportamentos, posturas e ações, englobadas
sob os rótulos de cidadania, ambientalismo e internacionalização de hábitos e
signos culturais.
Instala-se um campo magnético de
implementação de vontades, na esfera de criação, de aspirações positivas, de
ações em defesa dos mais carentes e mais fracos, símil daquele momento
posterior à Segunda Grande Guerra, que fez acender ânimos e crenças – aquele suelo de creencias, vislumbrado por
Ortega y Gasset -, ao tempo em que se desmoronavam velhas e caducas formas de
afirmação e poder, sob o pálio de novas idéias e padrões de convivência humana
e social. Ruem os modelos de dominação do homem pela porta do individualismo,
instalando-se uma nova ordem pontuada pelas idéias de liberdade, democracia e
socialismo.
Hoje, ao fim de uma trajetória que
levou de roldão mitos e crenças, alçam-se bastiões de propagação das criações
do espírito, como a se instalar um estado de necessidade regido pela lucidez,
cujo universo se manifesta e se codifica por meio de novas palavras, novos
signos, novos gestos, propagados como compromisso de teor universal.
Em face disto, numa linha de
premonição, a poesia de Jacinta Passos distingue-se como uma luz precursora de
etapas e realidades futuras e se afirma, apesar de editorialmente curta, como
um farol, a iluminar múltiplas sendas, planaltos e planícies, onde se vão
empreender marchas fatigantes, porém essenciais.
Vejamos como se apresenta a poesia de
Jacinta Passos nesta sugerida grade temática.
Três poemas de Momentos de Poesia – “Mulher”, “Mistério carnal” (ambos já
anteriormente aludidos) e “Canção simples” – deflagram o processo em que a
condição feminina rompe o grilhão da religiosidade, a que a poeta se filiara
por doutrinação espiritualista e inclinação mística, para adquirir expressão de
independência em “Três canções de amor”, “Canção da alegria” e, principalmente,
num poema de mais fôlego estrutural, “Chiquinha” – todos de Canção da Partida.
No primeiro dos três últimos,
valendo-se de reiterações de uma cantiga de roda do folclore infantil, no ato de
oferecer o corpo de mulher ao amado,
porque assumida a condição com naturalidade, sabe que “amar é doce”,
enquanto o efeito da entrega “agora muda o sol”, que “muda a terra”, ela e
também o parceiro, para ambos virarem passarinho, símbolo de pureza e liberdade.
E logo a série de perguntas emblema:
Cadê a Princesa?
A
Princesa fugiu?
A
terra tremeu?
A
torre caiu?
O amor é grande,
porém ainda sobram determinações, regras. Logo a poeta decide mandar, e é uma
ordem:
Abra a porta,
queremos
entrar!
(...)
Que
porta pesada.
Que
porta caturra!
Empurra!
(...)
Já
cresce o gigante
maior
que o mar.
A
porta de bronze
vai
arrombar!
No segundo poema,
“Canção da alegria”, elementos do folclore infantil de matriz rural se unem no
ato de fazer para sugerir um outro fabrico, além da farinha, quando a urupemba,
de tanto peneirar, não resiste, e logo sobrevém o aviso, o grito:
Olhe o rombo
olhe
o rombo
olhe
o rombo arrombou!
olhe
o cisco
olhe
o risco
urupemba
furou!
(...)
Escorra! Escorra!
Tirai
essa borra!
E restará no fim:
Farinha fininha
Peneiradinha!
Ai!
vida, que vida
minha!
nuinha!
Vida
igualzinha à da “Nêga Fulô”, de Jorge de Lima.
Dedicado a sete mulheres – todas
certamente de linha participante, como a poeta -, o poema “Chiquinha” tematiza
a condição feminina numa perspectiva histórica que enfileira geografias e
impérios remotos, séculos, humanidades e conflitos, rumo à libertação do
indivíduo mulher em plena sociedade burguesa capitalista, onde a máquina,
símbolo de escravização mecânica, se torna o instrumento ideal de, por artes da
perseverança e da determinação, alcançar-se a salvação.
A máquina, típico meio de extensão de
braços e mãos, depois do inexorável passar de sofrimentos e humilhações,
liberta na mulher operária o corpo “de
serva doméstica” e, arrancando-a de casa, “derruba paredes/ limites, fronteiras/ do lar, doce lar/ - prisão
milenar”.
E um corpo liberto constrói o mundo,
pela dignidade do trabalho, bom e valoroso – o bastante para a poeta proclamar
e concluir, indagando afirmativamente:
Chiquinha
tu
sabes que a máquina
que
move
o
mundo moderno
te
vem libertar?
Em “Canção simples”, o recurso ao verso
em redondilha patenteia vontade de alteração, de mudança, com um dinamismo
rítmico que acondiciona o impulso de vencer a adversidade da submissão
feminina, refletida comparativamente na imagem da “flor caída no rio, que a
leva para onde quer”, como fatal destino. Mas, encadeando paralelismos, a poeta
maneja uma dialética em que subsiste a idéia da “mulher semente”, da entrega da
virgindade como uma divisão que não deixa resto, das confissões masculinas de
amor infinito que contrastam com a finitude da vida, para por fim rotular a
submissão chancelada pela relação sexual como expressão da “fraqueza humana”.
Não sem razão, José Paulo Paes, em seu
estudo crítico, invoca observação de Sérgio Milliet, que ressaltava, em Jacinta
Passos, uma sensibilidade “marcadamente feminina”, a abrir-se para “uma visão
crítica da condição da mulher rara de encontrar-se na poesia brasileira” até
ali, basicamente por meio da criação poética projetada na Canção da Partida.
“Cantiga das mães”,
de Momentos de Poesia, encara o tema
da criança numa clave de fatalidade, subjacente na inevitável perda maternal do
filho, por efeito de um determinismo existencial, imposto pela ordem natural
das coisas.
Fruto quando amanhece
cai
das árvores no chão
e
filho depois que cresce
não
é mais da gente não.
Porém, não é a cadeia do afeto possessivo,
supervisionada por um desígnio da natureza, capaz de impedir que filhos cresçam
– “antes ficassem meninos/ os filhos do sangue meu”, geme o coração materno -,
pois quem leva o filho não é a morte, mas a própria vida, na dialética de uma
realidade cíclica.
Amargamente, para a mãe, os filhos
partiram - “foram viver seus destinos,/ isto sempre foi assim”, consente a
razão conformista - longe, bem distante de “berço, riso/ coisas puras,/ brigas,
estudos, travessuras/ tudo isso já passou”, rematando com o doloroso refrão:
Foi
a vida que roubou.
Depois da “Canção para Jana” (Poemas Políticos), na qual, ferida no
mesmo bordão de perda irrecusável - “Flor buliçosa/ rosa crescei” -, suspira a
incerteza da volta, para agasalhar-se “na sombra aqui destas asas/ um dia”, é
na “Canção de brinquedo” que o estado de resignação se impõe, na certeza de que
“no riso da terra/ riso será”, riso que (avisa) “não é de graça”, porque para a
“flor de sangue” invocada (a criança) “tempo virou/ tempo virá”. E mostra a
linha de risco, marco de desafio, já que a menina não é “flor sozinha”, logo
novo aviso:
Um olho aceso
entre
as mulheres
criatura
minha.
E
então manda o destino de ser liberto, que segue (a menina) puxando o novelo:
Agora sim.
Flor
no cabelo
entra
na roda e dança, ó jasmim.
Obra seminal desta antecipação de
temáticas que irão proliferar num contexto de humanismo universalista, Momentos de Poesia apresenta o poema que
traduz o sentimento inaugural de devoção e reconhecimento do primado da
natureza – “Campo-Limpo”, justamente o nome da fazenda onde nasceu Jacinta
Passos, nas proximidades de Cruz das Almas, no Recôncavo baiano.
É lá que, nos seus “campos banhados de
sol”, literalmente viceja “o ardor da seiva rebentando nessa natureza viva”,
propagado em doçura de céu crepuscular, árvores frondosas “que se alongam como
fantasmas quando a noite desce”, cujo esplendor de beleza provoca “uma estranha
alegria”, por de lá provirem “sombra e flor e fruto” - paisagens que fazem
reviver “interiormente, “todos os instantes perdidos para sempre”, ocultos, de
uma infância já morta, mas conservada no ser profundo.
Nessa poética de descortino virtual do
mundo, o amor livre, presumido e desejado em canção, não acontece apenas com o
despir da roupa da mulher, mas no instante em que o “corpo é fruto” (“Canção do
amor livre”). Traduzido em escrita despojada:
Peixe e pássaro, cabelos
de
fogo e cobre. Madeira
e
água deslizante, fuga
aí
rija
cintura
de potro bravo.
E o corpo masculino aflora como
Relâmpago depois repouso
Sem
memória, noturno.
A predisposição de amar, de dar-se ao
amor (“Chamado de amor”), não se consuma como exorcismo carnal, mas como forma
delineada a partir de potencialidades da natureza que se manifestam:
Tanta
laranja madura
ai
tanta!
que
aroma vem do quintal.
A
maré já deu passagem
cresce
meu canavial.
(...)
Jasmim
da noite floriu.
Jasmim.
Acabou-se
o bem e o mal.
Desde o recurso à inserção de formas
líricas oriundas do universo infantil, usando refrões de cantigas de roda - Passa/ passa/ passará/ derradeiro ficará (“Canção
da Partida”); Eu fui por um caminho. / Eu
também ./ Encontrei um passarinho./ Eu também (“Três canções de amor”);
Su su su/ neném mandu/ quem dorme na lagoa/ é sapo cururu
(“Cantiga
de ninar”) -, de formas folclóricas (samba-de-roda), até toadas de trabalho – Urupemba/ urupemba/ mandioca aipim! /
peneirar/ peneirou/ que restou no fim? (“Canção da alegria”), como observa
José Paulo Paes, a poesia de Jacinta Passos avança para latitudes criativas em
que ressaltam preocupações com as adversidades do ser humano, centradas no
sofrimento e em estados de infortúnio que se apossam de almas desamparadas pela
sociedade, de que são exemplos, para resumir, os poemas “Navio dos Imigrantes”,
“Sangue Negro” e “Carnaval”.
O primeiro deles, dedicado ao pintor
Lasar Segall, que ilustra a primeira edição de Canção da Partida, exalta a triste saga aventurosa de seres humanos
impelidos aos quadrantes do mundo por vicissitudes diversas, como “corpos
largados/ desamparados, / límpido tempo/ de primavera/ mora no fundo/ de vossa
espera”.
Corpos humanos
suportam
corpos
seus desenganos.
Corpo,
cansaço
longa
viagem,
busca
um regaço
terra
ou miragem.
O segundo, “Sangue Negro”, lavrado em
vertente nitidamente social, irradia um halo de confiança plena na extinção do
flagelo da miséria que se abate sobre seres humanos, através de forças latentes
criadoras do progresso material, como no fazer jorrarem as reservas
petrolíferas das profundezas do solo baiano – “sangue negro da cor da noite/ da
cor do negro africano”, em alusão ao braço que muito deu à terra de que foi
escravo -, energia libertadora, que impulsiona transformações múltiplas,
refletida até mesmo no aboio de indício mutante do vaqueiro nordestino – “O
homem tira da terra/ a chuva que o céu não dá”. E até, com a alma transbordante
de fé,
O lavrador
largará
a enxada que dos pais recebeu
e
moverá os arados mecânicos
que
os homens de outras terras lhe ensinaram
através
da distância e dos ventos oceânicos.
Em “Carnaval”, manejando o verso-livre
- uma particularidade formal da poética modernista - a linguagem se solta,
variam timbre e ritmos, aflora um estado de ânimo que, penetrando numa
expressão da vida popular, acompanha o seu desenrolar, impelido pela imaginação
plural, em flagrante manifestação de liberdade ao longo dos espaços urbanos,
chancelado pela mistura de raças e classes, cores e ritmos, própria da cultura
da Bahia.
É ali que, pelos cantos e batuques, o
“negro é rei”.
Negro é rei
no
carnaval,
tem
manto, tem cetro,
e
o chapéu de sol
é
pálio real.
É no carnaval que
“gritos humanos, interjeições, / lança-perfumes, desejos sem rumo (...)/ um
cheiro forte de todas as raças,/ vibram no ar.”
Uma massa humana,
todas
as cores,
todas
as raças,
todas
as classes,
em
confusão.
De
que sub-solo irrompeu, informe, nua,
essa
nova realidade sem nome que dança na rua?
E prossegue a poeta, registrando em
versos a mistura sem fim – homens, mulheres chiques que têm amantes, vagabundos
elegantes, literatos de academia, gente graúda, gente pobre, louro estrangeiro,
ondas humanas, cuja voz se perde na multidão e no asfalto.
Um povo surgiu, surgiu não sei donde
dançando,
cantando,
um povo surgiu.
Universo de símbolos em que se reflete
a alma de Jacinta Passos, porque a um só tempo está no seu sangue, em que se
concentram sementes de vida popular.
No meu sangue,
as
raças,
as
classes,
os
povos
misturam-se.
Eu
sou a Bahia.
Viva
o Rei Momo!
Hoje é seu dia.
A permanência da poesia de Jacinta
Passos há de ser analisada pelas virtualidades que antecipa o seu humanismo
militante em relação a temas hoje mundialmente disseminados sob rótulos e
bandeiras diversas em defesa de princípios como cidadania, meio-ambiente e
solidariedade internacional na luta contra a ignorância, a violência e a
miséria, por efeito das palavras que usa para expressar seus estados de alma,
na busca de si mesma.
Desta
maneira, poemas, versos, timbres e variados ritmos de sua obra, lastimavelmente
curta, fazem-na uma precursora de idéias, movimentos e campanhas hoje
agasalhados sob o vasto pálio da ação humanista patrocinada por organizações
não-governamentais (ONGs), instituições nacionais e internacionais, em vários
países, proclamados e consagrados como vias capazes de assegurar ao homem paz e
sobrevivência produtiva na terra. Uma poesia que propaga sonhos e metamorfoses,
pela força de seu lirismo.
Ilustração sem indicação de autoria para o seu poema "A Volta", publicado em 1953, em um jornal comunista. |
_________________________
Baiano
de Uruçuca, Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e escritor. Professor
aposentado da Universidade Federal da Bahia – Ufba; pertence à Academia de
Letras da Bahia, onde ocupa a Cadeira nº 31. Entre outros livros, publicou A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior, 1996, Mares Anoitecidos, 2000 e Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001,
de poesia; e Estação de Prosa &
Diversos, 1997, A Comunicação Social
na Revolução dos Alfaiates, 1998, e Travessia
de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, 2004; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais, 2012. Texto escrito
especialmente para o livro Jacinta
Passos, coração militante – poesia, prosa, biografia, fortuna crítica (Salvador-BA:
Edufba / Editora Corrupio, 2010), tendo Janaína Amado como sua organizadora
(págs. 521 a 531).