EDIÇÃO ESPECIAL- 105 ANOS DE ITABUNA






A CIDADE AMADA


Por Cyro de Mattos

Debruço-me na ponte de teus anos,
Alegre  meu cantar de passarinho,
Descubro manhãs de céu azul,
Continentes luminosos de tesouro.

Há rações verdes nas esquinas,
Vermelhos estandartes nessas ruas,
Espocam bombas dos passeios,
Explodem papagaios nos quintais.

Minhas as mãos de cata-vento,
No peito os bichos meus irmãos,
Noites amenas vertem espaçonaves,
Margaridas, boninas, girassóis.

Quem me fez água de chuva
Branca correndo em amado chão,
Perfeito estilingue nas caçadas,
Bola de gude nas partidas ideais?

Passistas as tropas vêm chegando,
Festa suspensa em ruivo poeiral,
De cores carregam-me tão velozes,
Tremula minha cidade de metal.

São meus os frutos cheios de ouro:
Jaca, sapoti, cacau, manga, mamão,
Apinhada de esperança a geografia
Enche minha capanga de risos naturais.

Na paisagem viva vejo-te  amores,
Quermesse acariciando corações,
Primeira ternura de namorado,
Presépio coroando-me infante rei.

Dentro de mim mergulhos ressoam
E sustos movendo carrosséis,
Passam neste vale mágicas nuvens,
Cantigas de São João e de Natal.

Que me dizem ventos de agora?
Pedras, cortes, incompreensões,
Gomos amargos de ocorrências
Na alma penetrando o que faz mal.

Lombo levando velho boi sábio,
Realejo tocando constante canção,
Cajado do tempo que não cansa,
Geme nas entranhas o meu rio.










ITABUNA SEMPRE

R. Santana

Gente deveria ser igual cidade que o tempo não destroi, mas constroi. O homem quando nasce, nasce bonito, se velho morre, morre pelancudo, murcho, desdentado, envergado, calvo, pele enferrujada, dor aqui, dor acolá, o tempo não perdoa... A cidade nasce com ruas tortas e estreitas, caminhos, casebres de taipas, de adobes, de tijolinhos, esgoto a céu aberto, iluminação precária ou sem iluminação, abastecimento de água improvisado, etc., etc., porém, à medida que o tempo passa, torna-se arquitetada, bonita, atraente, confortável, iluminada, ruas largas, água na torneira, casas planejadas, prédios, arranha-céus, transportes de massa, escolas, postos de saúde, hospitais, segurança pública, justiça, assim ocorreu em Paris, em Londres, em Roma, em Jerusalém, em Washington e em Itabuna.

Itabuna nasceu às margens do rio Cachoeira sob os olhares dos índios aimorés, tupis, tupiniquins e a força econômica dos tropeiros que faziam passagem para Vitória da Conquista na rancharia “Pouso das Tropas” na Burundanga, de José Firmino Alves. O sobrinho do cacauicultor Félix Severino do Amor Divino e filho de José Alves, Firmino Alves, foi o verdadeiro fundador de Itabuna, em 1906 ele doou as terras para sede administrativa do município, antes foi o Arraial de Tabocas, Vila, enfim, Itabuna, desmembrada de Ilhéus em 28 de Julho de 1910 e seu primeiro prefeito o engenheiro Olynto Batista Leone um dos apaniguados do coronel do cacau e político Firmino Alves.
O historiador Adelindo Kfoury registra que Firmino Alves não foi somente um grande fazendeiro, um coronel do cacau, tanto quantos muitos de sua época, mas um homem de excepcional capacidade administrativa, ainda jovem, com a morte do seu pai, mudou-se de Burundanga para o Arraial de Tabocas e construiu na Rua da Areia (Miguel Calmon), uma moradia suntuosa para os padrões da época e um armazém de cacau.
Firmino Alves além de empreendedor, foi um político de quatro costados, desde cedo, articulou junto às autoridades do estado a independência de Itabuna. Alguns anos antes do desmembramento de Ilhéus, Itabuna ainda Vila de 10.000 habitantes, estimulou a vinda de profissionais qualificados, em pouco tempo, engenheiros, médicos, professores, agrônomos, topógrafos, agrimensores, dentre outros profissionais, desembarcaram aqui com a promessa de um novo El Dorado.

Hoje, Itabuna não lembra de longe o Arraial de Tabocas, não é uma metrópole, mas é uma cidade grande: comércio forte, indústria incipiente, agricultura doméstica, sistema de saúde significativo, escolas para todas as faixas de idade, faculdades privadas, universidade, centro administrativo, bom sistema de segurança pública, justiça que atende às demandas, transporte de massa satisfatório, infraestrutura em expansão, ruas e avenidas asfaltadas, arquitetura moderna, uma frota significativa de automóveis e dezenas de bairros em torno.

Porém, a marca principal de Itabuna é o seu povo. Itabuna foi construída por gente simples e ordeira que migrou de outros estados do Nordeste, principalmente, o estado de Sergipe. O itabunense é alegre, bondoso, solidário, prestativo, acolhedor, trabalhador e inteligente. Não é a toa que o forasteiro não se sente forasteiro pouco depois que chega a este pedaço de terra do Sul da Bahia.

A cultura itabunense tem atuação expressiva no cenário nacional. Os nossos poetas, os nossos escritores e os nossos artistas são reconhecidos aqui e lá fora. Não se pode negar a contribuição às letras e às artes de Itabuna, de Jorge Amado, Valdelice Pinheiro, Firmino Rocha, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Telmo Padilha, Plínio de Almeida, Minelvino Francisco Silva, Walter Moreira, José Bastos, José Dantas de Andrade, Adelindo Kfoury, Jorge Araújo, Ruy Póvoas e tantos outros que a memória e o tempo impedem-me de nomeá-los, mas, eles não têm contribuição menor.

No próximo 28 de Julho, Itabuna completará mais de cem anos de cidade, uma adolescente comparada às suas irmãs de milênios! Mais de cem anos de acolhimento aos seus filhos aqui gerados e aos seus filhos adotados. Mais de cem anos de luta, de intempéries, de espoliações, de estagnação, mas, também de desenvolvimento, de alegrias e vitórias.

Itabuna mãe, madrasta, amiga, Itabuna sempre.












 ITABUNA, A PRINCESINHA DO SUL DA BAHIA.

                      Rilvan Santana


Fui trazido para Itabuna por minha tia Judite, depois “mãe” Judite, no meado do século passado, em tenra idade, ainda vestindo fralda. Claro que não guardo na mente imagens e fatos daquela época, mas lembro-me de muita coisa quando eu tinha 5 ou 6 anos de idade.
Minha tia e o marido moravam no bairro São Caetano, aliás, “Fuminho” naquela época, é que dois amigos do alheio roubaram umas bolas de fumo na cidade e esconderam o produto do roubo no outro lado do rio no pequeno povoado que se formava que viria ser o São Caetano. O subdelegado de calça curta prendeu os marginais, mas o apelido “Fuminho” permaneceu por muito tempo até se firmar como bairro São Caetano.
O nome “São Caetano”, diz o povo que foi uma homenagem ao pioneiro das terras que se chamava José Batista Caetano, ou, uma trepadeira, uma herbácea que dá melão e chamada de São Caetano. O terreno produzia São Caetano em profusão mais que erva daninha. Não conheci José Batista Caetano, o fundador do bairro, conheci os seus filhos, Peó e Zezinho, dois negros cordatos, de coração grande, porém, sem instrução, depois de prolongado litígio, eles perderam essas terras para Dr. Durval Guedes de Pinho, filho de um famoso coronel caxixeiro das terras produtoras de cacau.
Itabuna, daquele tempo distante, não passava de uma cidadezinha rodeada de fazendas de cacau por todos os lados. Suas ruas principais eram as ruas: J.J. Seabra e 7 de Setembro. Contavam-se os bairros nos dedos das mãos. O centro da cidade limitava-se à Praça Adami, Rufo Galvão, Paulino Vieira, Adolfo Leite, Rui Barbosa e Duque de Caxias, Rua do Zinco e Avenida Garcia, não existia a Avenida Cinquentenário nos moldes de hoje.
A feira-livre era o centro comercial da cidade, vendia-se de tudo, a feira-livre só perdia como atrativo com a chegada do trem, pois quem não queria ver a chegada e a partida do trem apitando e bufando vapor? Ninguém.
A principal festa cívica da cidade não era o seu dia, mas o dia 7 de Setembro. As escolas saiam do campo da desportiva e marchavam pelas principais avenidas da cidade sob os olhares das autoridades, o controle e disciplina dos professores e a galhardia e a elegância da meninada.
Havia uma disputa não declarada qual a escola de melhor banda, de melhor coreografia, de melhores halteres, melhor balística, ou, de melhor ginástica rítmica. A “Escola Sagrado Coração de Jesus”, no Banco Raso, da professora Nair Assis Menezes (90 anos de idade e lúcida), sempre se destacava entre as primeiras em quase todas as atividades escolares.
Os principais veículos de comunicação eram: o “Intransigente”, o “Diário de Itabuna”, a “Rádio Clube”, a “Rádio de Difusora” e por fim a “Rádio Jornal”, não havia televisão, nem computador nem Internet. Porém, a comunidade era tão bem informada quanto hoje. As emissoras de rádio transmitiam de júri a futebol, além de programas de calouro e jornal falado com o tempo, além das emissoras de AM, surgiram as emissoras de FM.
O rio Cachoeira era orgulho da comunidade, muitas famílias se sustentavam com os peixes tirados de suas águas limpas. O rio também era usado por banhistas e canoeiros. O rio Cachoeira atual é um grande vaso sanitário, onde os peixes morrem por falta de oxigênio e pela poluição e os governos municipais não tomam providências. Hoje, a comunidade não tem mais orgulho de tê-lo e os poetas choram a cachoeira nos seus versos que não desce mais, a cachoeira corrente não corre, borbulha...
Se os ponteiros do relógio do tempo girassem para trás e Itabuna voltasse ser a cidadezinha quase bucólica em que o cidadão batia papo no passeio de sua casa nas noites de verão e os namorados de mãos entrelaçadas passeavam pelas ruas nas noites de Lua cheia e as casas não tivessem grades e o rio Cachoeira tivesse vida com o progresso atual, não seria uma maravilha!? O progresso chegou bem-vindo, não se pode queixar do progresso, porém, queixa-se dos males que acompanham o progresso, queixa-se da qualidade de vida que se perdeu.
Não sou itabunense de nascimento nem de título, mas amo Itabuna, nesta cidade, eu quero me deitar para sempre.




AMADO JORGE


R. Santana



O nosso amado Jorge Amado não nasceu para pertencer a um lugar, mas nasceu para ser universal. Seus biógrafos tiveram o trabalho inicial de delimitar o lugar do seu nascimento por conta de algumas interpretações bairristas dos seus conterrâneos. Porém, nunca houve dúvida que Jorge Amado era brasileiro, baiano, adepto do candomblé e era Obá de Xangô no Ilê Opó Afonjá, comunista, jornalista e escritor. Todavia, tergiversava-se se ele era soteropolitano, ilheense, itabunense, pirangiense, itajuipense ou mesmo filho da fazenda Auricídia. Naquela época, com exceção da jovem Itabuna, tudo era município de Ilhéus, consequentemente, para os doutos de meia tigela, Jorge Amado era ilheense. Entretanto, a história é construída de fatos verdadeiros que podem ser dúbios no nascedouro mas incontestáveis no final: Jorge Amado foi registrado em 10 de agosto de 1912, Ferradas-Iabuna, Bahia, Brasil e ponto final.
Na minha juventude, estudante do antiquíssimo curso “científico”, hoje, com o rótulo de médio, comecei gostar de literatura. Li os românticos, os realistas, os simbolistas, os parnasianistas, os barroquenses, escritores brasileiros e portugueses. Tudo lindo, tudo bonito, gênios da palavra, mas fiquei enamorado dos modernistas, dos regionalistas. Quem não viaja na leitura de uma Rachel de Queiroz, de um José Lins do Rego, de um Érico Veríssimo, de um Adonias Filho, de um Graciliano Ramos, de um Jorge Amado e por aí afora? Todos.
Claro que não se pode empanar o gênio de um José de Alencar, de um Bernardo Guimarães, de um Eça de Queiroz, de um Camões, de um Castro Alves, de um Fagundes Varela, de um Artur de Azevedo, de um Aluísio de Azevedo e de um Machado de Assis. Todavia, para o tabaréu que sou, sem muitos dotes intelectuais e culturais, a prosa regionalista que fala da terra, do chão que piso, das mazelas não muito distantes de um povo ignorante, de pouco saber, é essa prosa que gosto. E, quem pintou com cores fortes, divertimento, lucidez e ousadia essa prosa regional? Jorge Amado!...
Comecei ler Jorge Amado depois que sua obra mais conhecida “Gabriela, cravo e canela”, virou novela, na Rede Globo, adaptação de Walter George Durst, com Sônia Braga, José Wilker e Paulo Gracindo nos papéis principais. Lembro-me que antes dessa novela, havia uma censura velada de suas obras, uma rejeição subjacente dos intelectuais, por considerá-lo desbocado, pornográfico, de poucos recursos gramaticais, uma subliteratura. As escolas, os professores, raramente usavam os seus textos na aprendizagem de seus educandos. Hoje, graças a Deus e ao bom senso, ele é um dos autores mais lidos e traduzidos em mais de 50 países, com adaptações no cinema e na televisão de suas obras. O erotismo de seus personagens, pode ser lido por ingênuos meninos que ainda estão fazendo a 1ª. Comunhão da Igreja Católica, comparado ao erotismo dos personagens de um “Budas ditosos” de João Ubaldo Ribeiro e de outros romancistas do gênero.
Sua obra “Gabriela, cravo e canela”, é um poema em forma de romance. Seus personagens possuem uma ingenuidade, uma simplicidade e uma pureza de sentimentos que somente Jorge Amado sabia descrevê-los Quando João Fulgêncio tenta justificar e compreender as travessuras e a natureza infiel de Gabriela para o turco Nacib, o faz como se estivesse recitando um verso: “Nacib, certas flores são belas e perfumadas enquanto estão nos galhos, nos jardins. Levadas pros jarros, mesmo jarros de prata, ficam murchas, morrem”. Em Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado narra à derrocada política dos coronéis do cacau que governavam entrincheirados por jagunços, em que prevalecia o poder de fogo de cada fazendeiro para decisão e homologação de resultados eleitoreiros viciados e cheios de fraudes.
Os coronéis Ramiro Bastos, Melk Tavares e Amâncio Leal são os últimos remanescentes desse período arbitrário e autoritário das terras do sem fim. Esses personagens em Gabriela, cravo e canela, representavam um passado de lutas, de sangue derramado, de caxixes e de banditismo que duma forma ou doutra, tinham construído a civilização do cacau e Ilhéus era a cidade símbolo dessa civilização.
Por outro lado, Capitão, Doutor, Ezequiel e Mundinho Falcão, representavam o novo, o império da lei, novos métodos administrativos, novas ideologias estribadas em ações políticas comuns, cujo principal beneficiado era o povo.
O romance de Gabriela e Nacib, o crime da mulher do coronel Jesuíno e do seu amante, as raparigas e o cabaré de Maria Machadão, eram os condimentos necessários para o tempero desse romance e dessa história da civilização do cacau. Onde já se viu uma civilização sem esses ingredientes? Mesmo as civilizações mais primitivas, têm lutas, têm crimes, têm traições, têm paixões, têm amores impossíveis e tem o homem.
Tocaia grande é a odisséia do cacau. A odisséia que Homero não escreveu porque não era baiano mas, a odisséia que Jorge Amado escreveu porque não era grego, com as cores vermelhas do sangue derramado dos jagunço e de homens que não arredavam pé do seu pedacinho de terra e terminavam estirados nos pastos servindo de comida para os abutres e de carniças para os urubus.
“Tocaia grande” é o foro onde o capitão Natário da Fonseca e sua corja assinam a escritura do crime da terra, outorgando ao coronel Boaventura Andrade o direito de estender seus domínios por sesmarias de terras virgens, sem dono. Transformando dentre em pouco, o maior produtor de cacau daquela época e tendo como principal dispêndio, a compra de duas dúzias de rifles e munição.
Em Tocaia grande, Tieta e Tereza Batista, são as obras que Jorge Amado mais explora o lado sensual e erótico dos seus personagens. O sexo, o sexo promíscuo das raparigas, das concubinas, das amantes e dos papa-crias, ele não ter sido considerado pela crítica especializada, durante algum tempo, um escritor de gênio universal.
Vejo em Dona Flor e seus dois maridos, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, o Jorge Amado místico, irreverente, que envereda nos fenômenos metafísicos com humor, hilariante, explorando o lado ingênuo dos seus personagens e sua miséria social, dando também, uma pincelada na sensualidade e no prazer que é a principal finalidade do homem para ser feliz. A morte não é o fim em si, mas uma mudança de plano. Embora haja alguns senões da crítica especializada e Jorge Amado não tenha sido virtuoso, um mestre do idioma, foi um escritor preocupado em transformar seus vilões, em personagens vítimas de um contexto de exploração trabalhista e injustiças sociais. Não era um erudito, era um romancista popular. Não tinha a erudição autodidata de um Graciliano Ramos, de um José Lins do Rego, de uma Rachel de Queiroz e de um desconhecido Franklin Távora, que falam do sertão, dos cangaceiros e da fuga do sertanejo pela inclemência do sol e falta de chuva, pasto para engorda do gado, com maestria e leveza. Jorge Amado preferia explorar o lado romântico e mundano dos jagunços e dos coronéis. A vida de engodo das meretrizes e concubinas, a carolice das sinhás e o fanatismo singelo e simples da maioria daquele povo que construiu o Sul da Bahia.
E, quando Jorge Amado adentrava em outras plagas literárias, a exemplo da biografia de Carlos Prestes em o Cavaleiro da esperança, e a história do comunismo brasileiro nos Subterrâneos da liberdade, ou quando ele dá uma de biógrafo em A. B. C. de Casto Alves ou quando ele narra as futricas, as intrigas, a ascensão e o poder da Academia Brasileira de Letras, em Farda, fardão camisola de dormir, ele torna-se um autor maçante, de erudição chata e superficial, mas o veio de um romancista desenvolto, lúcido e inteligente que mesmo fora de sua seara faz história, é visível. Tomba, alquebrado pela idade e pela doença, o Obá de Xangô, em sua Bahia, na cidade de Salvador, em 06 de agosto de 2001, aos 89 anos, o maior romancista dos tempos atuais, do Brasil.

Autor: Rilvan Batista de Santana

Licença: Creative Commons






SÃO CAETANO

R. Santana




Porém, em tempos idos, muito antes de Frei Joaquim Cameli desembarcar por estas bandas, muito antes dos padres capuchinhos passarem aqui, na época das missões, a fé dos moradores do São Caetano era confiada a Dona Pedrina, Manuel Canguruçu, Mãe Ester, Caboclo Ló e Maria Sertaneja, os primeiros e principais pais-de-santo, filhos de Iansã, Obá, Ibeji, Oxossi, Ogum, Iemanjá e outros orixás, filhos da umbanda de Angola...         O São Caetano, hoje, é privilegiado pela quantidade de suas igrejas, a igreja Santa Rita de Cássia é a mais velha e a mais suntuosa, mas existe templo Adventista, Batista, Testemunha de Jeová, Universal, Assembleia de Deus, Igreja da Graça, além de igrejas dissidentes locadas em salão de garagem, portanto, se algum pesquisador fizer uma enquete, encontrará mais igreja do que bar (não é heresia), o que é generoso para a população, não obstante algumas servirem de fachada para exploração da fé e do bolso de incautos fiéis.



O seu sincretismo religioso fazia inveja às idéias ecumênicas atuais. Todos, sem traumas, tinham idéias cristãs permeadas de orixás, salvo, os pais-de-santo charlatães, de interesses escusos, manifestavam crença nos exus como meio de solucionar os males físicos e os casos de possessão dos seus clientes. Naquele tempo, todo barracão tinha um espaço reservado aos santos, à queima de velas, às oferendas e um quartinho escuro cheio de mistério, onde segundo a lenda, o babalorixá mantinha o Diabo preso e o soltava em sessões especiais.



Missa? Missa nos eventos anuais: Sexta-Feira Santa, Natal, Dia de São José e Quarta- feira de Cinzas. Os moradores emperiquitados, roupa domingueira, cabelo brilhantina, desciam a pé, a cavalo ou de carroça para o centro da cidade, no retorno, se despiam daquela parafernália indumentária, arregaçavam a bainha, penduravam os sapatos nas costas e voltavam pegando picula na estrada, às vezes, estrada enlameada.  



Porém, os adultos gostavam mais das festas e danças de candomblé, não movidos pela fé, mas pela superstição e requebro dos quadris das morenas e negras ao som dos tambores, possuídas pelos orixás... O som dos tambores era ouvido ao longe e ao invés do som repicado e monótono dos sinos, era mágico o som dos tambores de D. Pedrina ou de Manoel Canguruçu ou de Maria Sertaneja.  As filhas de santo, de corpo escultural, de roupa branca e descalça, todo o corpo se mexendo, principalmente, os quadris e os ombros, movimentos eróticos levavam à loucura os filhos de santo, de vez em quando, uma filha de santo embuchava do pai-de-terreiro ou dos filhos-de-santo, aí, o pobre coitado ficava na casa do sem jeito, o jeito era amancebar-se.  O pai-de-terreiro participava da dança de candomblé ou ficava sentado num estrado com postura de bispo, abençoando-os e recebendo louvores.



Cada pai-de-santo incorporava um orixá (Bará, Ogum, Oiá-Iansã, Exu, Ibeji, Odé, Otim, Oxalé), estes orixás controlam (conforme a crença), as forças da natureza, portanto, existe o orixá de cura, o orixá para expulsar os espíritos maus, orixá pra controlar as paixões, orixá Tinhoso, orixá para benzer as encruzilhadas, orixá da fortuna, enfim, orixá para fazer o bem e orixá para fazer o mal.



Os candomblés mais arrumados eram o de Dona Pedrina, o de Manoel Canguruçu e o candomblé de Maria Sertaneja. O candomblé de Pedrina era frequentado pela elite e pelos políticos, a elite, interessada em suas lindas filhas de santo e os políticos interessados no aumento do seu cacife eleitoral. O candomblé de Manoel Canguruçu era voltado para cura de pessoas com obsessão de perseguição, vítimas de bruxaria, endemoninhadas, possessas, e, não para o tratamento de neuroses histéricas, depressão, perturbação obsessivo-compulsiva, esquizofrenias e outras psicopatias. O candomblé de Maria Sertaneja cuidava dos despachos, da coisa-feita e das mandingas de encruzilhada.



Os malucos eram tratados por Manoel Canguruçu por certa “unguentoterapia”, uma substância estranha de rato morto, sapo, urubu, cobra, lagartixa que ele triturava tudo num pilão e deixava de fusão com uma mistura de ervas, após alguns dias, no sol e no sereno, aquilo se tornava uma “pasta putrefata” que era espalhada no corpo do maluco que se não ficasse bom...



Porém, as mulheres malucas, as moças histéricas, de calundu, as moças mal amadas, reprimidas pela ignorância dos pais e dos costumes, cheias de faniquitos, eram tratadas por Manoel Canguruçu com água de cheiro e muita mordomia, as más línguas juravam que elas caíam na lábia e na cama do pai-de-terreiro como a “mosca no leite”.



Um episódio policial acerca do candomblé é contado até hoje pelos moradores mais velhos, protagonizado pelo sargento Mário Silva, delegado do São Caetano naquela época: - As filhas de Iemanjá do Pai João Demétrio, voltavam do Rio Cachoeira com uns tabuleiros de oferenda, vazios, todas de traje branco, pulseiras e argolas, quando foram paradas pelo Jeep Willys do delegado, que autoritariamente, fez as moças subirem no automóvel com os tabuleiros e as levou para cadeia da cidade a pretexto de nada, minto, a pretexto de alimentar o seu ego etílico e autoritário.



Hoje, as histórias de antigamente, parecem contos da carochinha, histórias de Trancoso, fatos inverossímeis, porém, são histórias verdadeiras, crendices de gente simples, crendices que contribuíram para crença racional e o sincretismo cultural e religioso atuais. Naquela época, padre, pastor, médico, advogado e engenheiro eram de ouvir dizer... O São Caetano daquele tempo era uma comunidade de trabalhadores rurais, jagunços, burareiros, carroceiros, aguadeiros, bodegueiros, retirantes, mestres de ofício, a maioria absoluta, analfabeta e supersticiosa, mas sem essa gente, os caetanenses de hoje, não poderiam contar sua História.





Autor: Rilvan Batista de Santana

Licença: Creative Commons
Fonte oral: Pedro Batista de Santana     









OUTROS POEMAS DA CIDADE ANTIGA

      Por Cyro de Mattos


I

Soneto do Campo da Desportiva

De zinco era coberta a arquibancada,
A cancha tinha um piso esburacado.
Nem um pouco essa chuva demorada
Conseguia deixar desanimado

O torcedor, que curtia a jogada
Do seu ídolo na bola passada.
Dos pés a mágica mostrava  ser
Tudo um sonho para nunca esquecer.

O gol de placa do atacante quando
A partida já chegava ao final
E a marca da seleção que venceu 

Tantas vezes o intermunicipal
Seguiram-me na torcida de meu
Time pelos estádios do mundo.   






II


Soneto de Itabuna

Encontro-me no verde de teus anos,
Como sonho menino nos outeiros,
Afoitas minhas mãos de cata-vento
Desfraldando estandartes nessas ruas.

São meus todos esses frutos maduros:
Jaca, cacau, mamão, sapoti, manga.
E esta canção que trago na capanga
É o vento soprando nos quintais.

Quem me fez estilingue tão certeiro
Nos verões das caçadas ideais?
Quem nesse chão me plantou com raízes

Fundas até que me dispersem ventos
Da saudade e solidão? Ó  poema!
Ó recantos! Ó águas do meu rio!











        III

          Soneto de Carnaval


                                                   Pelo salão com a espada de pau,
        O olho tapado na cara de mau
                                              E a cigana que finge ser real
        O seu primeiro amor no carnaval.

                                              Agora estão  na praça principal
                                              Afoxés* e batucadas da nau,
        Teu  tempo de confetes, serpentinas
        E a lança que perfuma em cada esquina.

                               Era um grande barulho que fazias
        Na vida cheia de cores e alegrias,    
                                                         Com o preto, branco, rico, pobre. Ó meu

                                                         Marujo, de lá pra cá, sei dizer
                                                        Que noutra  onda rolou o mundo teu
                                                        E, na orla, nunca soubeste o porquê.