Carlos Eduardo Passos
O Brasil, país gigante pela própria natureza,
entrega-se sofregamente a uma faina bizarra: desfigurar romances, contos e
novelas de seus autores maiores. Tais obras primas, caídas na rubrica do domínio
público, sofreram o redesenho compatível aos ventos da pós-modernidade, sob o
pretexto de se tornarem compreensíveis aos leitores hodiernos.
A sanha destruidora tem o patrocínio do Governo
Federal. Por isso mesmo pululam em progressão geométrica novos engenheiros da
forma e conteúdo estético-literários.
Sem nenhuma sombra de dúvida realçam tais feitos a
ausência de maturidade cognitiva daqueles que vivem aprisionados nas teias do
mais lídimo surrealismo.
O redesenho encetado não proporciona melhor entendimento
das nossas obras primas. Ao contrário, a substância, o vigor, restam
inexoravelmente mutilados.
Um exemplo perfeito do afirmado encontra-se no
conto O Alienista, do grande Machado de Assis, que foi desfigurado para
torná-lo palatável ao século XXI, como afirma o escritor grapiúna Hélio
Pólvora, em artigo publicado no jornal A Tarde.
Mencionada ilustração, pode-se encontrar aplicação
reflexa em outras obras de ilustres escritores pátrios, como Euclides da Cunha,
José de Alencar, Guimarães Rosa.
Iniludivelmente, singrarão nesse mar proceloso os
nossos maiores poetas e mestres da retórica do ontem e do hoje, cujas obras
caíram, como já referido, no domínio popular. Outrossim, os poemas encômios de
Castro de Alves (Vozes D’África e Navios Negreiros) adquirirão colorido
indesejável e sintaxe anômala.
E o que dizer do estilo indireto, rico, mavioso e
sublime de Pe. Antônio Vieira, contido no famosíssimo “Sermão para o bom
sucesso das armas portuguesas contra os holandeses”?
Outros tantos exemplos configurativos podem ser
dispostos, tais como, o parnasiano Olavo Bilac, o prolixo Ruy Barbosa e o
invencível argumentador Tobias Barreto.
De Bilac, retire-se qualquer martelo ou cinzel em
suas admiráveis rimas preciosas, saídas da forja parnasiana. Por isso mesmo
preserve-se a riqueza polifônica do seu soneto Língua Portuguesa, em sua
primeira estrofe:
Última
flor do Lácio, inculta e bela,
És,
a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro
nativo, que na ganga impura
A
bruta mina entre os cascalhos vela...
Transplantando a realidade nacional para a
grapiúna, como justificar as emendas em joias literárias dos seguintes autores:
Sosígenes Costa, Valdelice Pinheiro, João Hygino Filho, Edgar Sousa, Plínio de
Almeida, Nathan Coutinho, Firmino Rocha, Abel Pereira, Gil Nunesmaia e Telmo
Padilha?
Não seria mais fácil aos dirigentes pátrios a
adoção de políticas públicas visando o revigoramento da educação e cultura
nativas?
Isso posto, seriam constituídos inúmeros centros
culturais pelo nosso interior, incentivado o hábito da leitura e construído o
cimento do respeito aos cânones da nossa literatura regional.
Nesse bojo coetâneo, assumiria relevo o magno papel
dos dicionários. Assim sendo, não mereceriam as obras primas nenhuma poda,
atualização linguística ou semântica, resguardando-se ideias, forma, estilo,
principalmente daqueles que estão sob a rubrica domínio público.
É o que acontece em outros quadrantes geográficos.
Em França, Inglaterra e Portugal, ninguém ainda ousou mutilar Balsac, Baudelaire, Victor Hugo, Milton, Oscar Wilde,
Shakespeare, Camões, Eça de Queiróz, Camilo Castelo Branco ou Almeida Garrett!
Destarte, o patrimônio cultural de um país resta
intocado. Certamente, esse seria o desejo de todo atento leitor brasileiro.